Sigilo nos protocolos e falta de autonomia na perícia alimentam ciclo de impunidade nas polícias

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Texto por
Luize Sampaio
Data
10 de setembro de 2021

A ADPF 635, medida que proibiu operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia, é um marco na luta dos movimentos sociais por mudanças na gestão da segurança pública. Mas, após uma onda de diminuição no número de mortos — com uma baixa de 30% em um ano segundo o Instituto Fogo Cruzado — a medida passou a ser sucessivamente descumprida e se tornou mais um exemplo de como os policiais fluminenses estão, historicamente e constantemente, descumprindo medidas judiciais. Enquanto o Supremo Tribunal Federal vota sobre uma abertura de investigação das operações que ocorreram durante a crise sanitária atual, o índice de letalidade policial preocupa.

O indicador de Letalidade Violenta, realizado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), mostra que em 2020, das mortes violentas que ocorreram na Região Metropolitana do Rio, 30% foram causadas por intervenção de agentes do estado, 99% dos mortos eram homens e 76,5% negros. Em seis dos 22 municípios da Região Metropolitana do Rio, as mortes provocadas pela polícia representaram mais de 40% de toda a letalidade violenta em 2020. Entre estes, Niterói se destaca com 81,3% das mortes por intervenção policial serem de pessoas negras, apesar de apenas 35,7% da população residente se declarar preta e parda (IBGE, 2010).

Infográfico da Desigualdade: Em seis cidades metropolitanas, as mortes provocadas pela polícia representaram mais de 40% de toda a letalidade violenta em 2020

A letalidade policial, assim como outros pontos da desigualdade social do Rio, já era recorrente em favelas e áreas periféricas antes da pandemia. Em 2018 foram registrados 1534 homicídios decorrentes de intervenção policial no estado, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, isto representa 1 a cada 4 homicídios cometidos por agentes do Estado em todo o país. Daniel Martins, de 20 anos, fez parte dessa estatística.  Filho da líder comunitária Joseane Martins, de 52 anos, ele foi morto durante uma operação policial no bairro km 32, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Hoje sua mãe integra a Rede de Mães e Familiares de Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense e luta para provar que Daniel foi executado. 

“O que aconteceu naquele dia foi uma chacina, mataram pelo menos 4 pessoas, algumas testemunhas dizem que foram até mais. O Daniel foi nascido e criado aqui, teve boa educação, eu sempre tive muito cuidado com isso. Mas quando fez 17 anos, ele começou a se misturar com uns meninos violentos da região que só faziam besteira. Perder o meu filho foi a pior coisa do mundo. O sonho dele era ser policial, agora ele se foi e deixou uma filha que na época estava recém nascida”, contou Joseane.

A mãe afirmou que o filho foi morto mesmo após ter se rendido, uma versão confirmada por moradores que teriam testemunhado a ação. Segundo ela, o que aconteceu com Daniel é recorrente na sua região.

“Tenho muitos vizinhos que também perderam seus filhos dessa forma, é até visto como comum. Nem todo mundo tem forças para lutar por justiça, mas eu sei que o meu filho tentou se entregar, ele tinha acabado de ser pai. Na época circulou um vídeo dele e dos outros rapazes, sem as roupas sendo torturados. Não abriram nenhum inquérito, a polícia alega apenas que foram mortos durante uma operação”, completou Joseane. 

Qual é o papel das polícias? 

A antropóloga, pesquisadora e professora do Departamento de Segurança Pública da UFF, Jacqueline Muniz, traduz os principais objetivos da segurança pública, que estão definidos na Constituição Brasileira, e também como deveria ser sua aplicação na prática. 

“A segurança pública é uma grande avenida onde se desfilam os direitos.  Ela significa a circulação de ideias, valores diversos, pessoas, bens e serviços em larga escala. As operações são um meio para atingir um fim e esse final é quando todos, não só uma determinada parte da sociedade, se sentem seguros. Se você não garante essa mobilidade espacial e social, se as pessoas experimentam mobilidade reversa, ou seja, são confinadas e isoladas – então, você não está oferecendo segurança, você tá oferecendo proteção que é individual, discriminatória e excludente”, resumiu a especialista. 

A Defensoria Pública do Rio vem trabalhando na tentativa de impulsionar que essas diretrizes já obrigatórias sejam de fato respeitadas. Em maio de 2020, o órgão entrou com uma ação na 1ª Vara da Infância e Juventude do Rio para proibir que as polícias Civil e Militar realizassem operações ou sobrevoassem de helicópteros escolas e creches do estado. Por mais que tenha sido uma vitória, o ouvidor da Defensoria Pública do Estado do Rio, Guilherme Pimentel, ressalta que medidas como essas já deveriam ser de praxe. Ele relata o tempo e esforços que o órgão precisa concentrar para defender medidas de proteção à vida. 

“A gente tá em um tempo em que a gente precisa defender o óbvio, levar pra justiça o que não deveria ser nem objeto de discussão. A gente não pode colocar a vida das pessoas em risco, não pode haver operação perto de criança, isso é o óbvio. A crise humanitária que a gente vive é tão grande que a gente precisa defender esses parâmetros básicos através de mecanismos complexos e ainda sim com dificuldade para garantir a efetividade das boas decisões judiciárias”, lamentou o defensor público.  

A medida que proíbe operações perto de escolas entrou em vigor dois anos após o menino Marcos Vinicius, de 14 anos, ser morto a caminho da aula. De uniforme, a criança foi atingida pelas costas e antes de morrer no hospital avisou para mãe que o disparo tinha vindo do caveirão. Junto com a Ágatha Vitória Félix, Emily Victória Silva dos Santos, Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos e Kaio Guilherme, ele entrou para o triste indicador nos últimos 5 anos que aponta para,  100 crianças que foram baleadas na Região Metropolitana do Rio, de acordo com a plataforma Fogo Cruzado.

Histórico e sigilos 

A polícia militar do Rio de Janeiro foi criada ainda no período colonial brasileiro. Após a vinda da família real portuguesa para o Brasil, a guarda real da polícia foi criada para proteger a corte, por isso podemos dizer que a polícia nasce e se molda a partir de uma cultura escravagista. De 1809 para 2021 os corpos alvos continuam os mesmo. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), jovens negros têm três vezes mais chances de serem mortos pela polícia no Rio.

“No nosso estado não temos política de segurança pública e sim uma política de caçada humana com 2 metas: a cova ou o cativeiro. Essa é uma política de uma continuidade histórica do nosso período de escravidão baseada no medo que as elites têm da juventude negra e pobre desse país, uma elite que quer controlar e exterminar essas pessoas – uma cultura da família real”, afirmou Pimentel. 

Outro problema crônico é a falta de acesso a informações. Os protocolos de ação policial no Rio de Janeiro não são públicos, as Secretarias da Polícia Civil e Polícia Militar não publicam quais são as diretrizes do seu trabalho. A especialista em segurança, Jacqueline Muniz, explicou que esses protocolos são uma tradução das autorizações que as policiais possuem, seu limite de atuação. Ela conta que tipo de riscos essa desinformação pode provocar.

“Não se sabe onde começa ou termina o poder da polícia, o que ela pode ou não fazer seja em uma abordagem, seja numa operação. O protocolo policial quando oculto significa que cada cabeça vai virar uma sentença.  Isso cria uma grande camada cinzenta que impede o controle social da ação da polícia, que é o que dá transparência e confiabilidade à ação. Aqui no Rio há uma automatização predatória do poder de polícia para fins pessoais e eleitorais, que nos conduz para um processo continuado de milicialização”, concluiu Jacqueline.

Entre a prisão e a morte, aqueles que têm seu destino cruzados com as operações policiais precisam lidar com falhas organizacionais antes, durante e depois do ocorrido. Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2019 mostram que 38% dos presos do Rio ainda não foram sequer julgados. Entre aqueles mortos por agentes do estado, as famílias têm dificuldade não só de provar a possível inocência do falecido como também de entender como ocorreu a morte. Um dos motivos que prejudica os dois destinos, prisão ou morte, é a falta de uma perícia independente e eficaz. Pimentel afirmou que essa situação é um problema estrutural do Rio já que em outros lugares já existe perícia independente com convênio com universidades públicas ou até institutos próprios com autonomia orçamentária. 

“Por mais que a legislação brasileira apresente a previsão da cadeia de custódia da prova, que é a garantia de preservação dos elementos de prova para a elucidação dos fatos, isso na maioria das vezes não é respeitado. Não se desfazer da cena, garantir a perícia de local, garantir a cadeia de custódia das provas são procedimentos básicos que já deveriam ter sido incorporados há muito tempo, mas que não são cumpridos. A gente tem um problema estrutural nessa história: a perícia no estado do Rio é subordinada aos delegados e só ocorre sob sua ordem.

“Exumei uma pessoa que não era meu filho” 

Além dos sigilos sobre as operações e os problemas de perícia, as famílias que são afetadas por essas ações ainda precisam lidar com outras perguntas sem resposta. A Dona Joseane, uma das mães da Rede de Mães e Familiares da Baixada Fluminense que abriu essa matéria, contou que recentemente foi fazer a exumação do corpo do filho e viu que não eram os restos mortais de Daniel.

“Passei por outra violência, cheguei lá e não tinha mais corpo nem caixão, tiraram um saco preto e falaram que era isso que tinha restado do meu filho, cremaram esses restos mortais ainda sem me avisar. Eu tinha esperança de ver pelo menos o cabelo do meu filho.  Estou agora numa luta judicial porque no atestado do óbito veio que o Daniel morreu de hemorragia interna, mas sei que meu filho morreu com tiro no peito. Fico pensando, quantas mães e famílias passam por isso e não sabem? Quantos têm os filhos enterrados como indigentes, caixões roubados, corpos trocados? É por isso que não posso parar”, afirmou a líder comunitária. 

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