O tempo do amanhã é agora – práticas culturais no enfrentamento à crise climática

Texto por
Comunicação Casa
Data
12 de dezembro de 2023

por: Marcele Oliveira e Taty Maria

Os efeitos da crise climática ao redor do mundo e principalmente no Sul Global não são nenhuma novidade. No Brasil, as águas de março fechando o verão perderam a graça faz tempo. Manaus, capital do Amazonas, ficou coberta de fumaça por semanas devido a queimadas nas florestas e tragédias não resolvidas como em Mariana (MG), Petrópolis (RJ) e Morro do Bumba (Niterói). A gente sabe que a indenização não alivia a barbárie e a natureza não desliza ou inunda somente porque quer. Um evento climático extremo é invariavelmente consequência das ações humanas em relação ao planeta: desvio de rios, construções inadequadas, exploração do solo e da água e agronegócio são somente alguns dos exemplos. 

A crise climática não começou ontem, e o que nos perguntamos é como será o amanhã diante deste cenário. Muito se fala do apocalipse e do fim do mundo, mas até chegarmos lá, o que iremos fazer para adaptar e mitigar os danos? O que nós, trabalhadores da cultura, devemos fazer e também o que nós, trabalhadores da cultura, devemos exigir dos nossos governantes? Essa é a pergunta! E uma pergunta que tem resposta. No campo do clima, é necessário adaptar os territórios e mitigar os danos, além de reduzir as emissões que levam o planeta a temperaturas extremas, reavaliando nossa relação interpessoal com o meio ambiente, abandonando um olhar exploratório e colonizador e entendendo que somos parte desse todo. Comunidades indígenas, originárias e quilombolas sempre souberam fazer isso, mas o projeto capitalista nos fez esquecer. Perdemos recentemente no Brasil um dos líderes nesse tema, Nego Bispo, quilombola piauiense que apontou para toda uma nova geração de ambientalistas um caminho essencial para enfrentar a mudança climática: a reconexão com o território, a biointegração – entre meio ambiente e seres humanos, nenhum acima do outro. 

Apesar desse assunto, “mudanças climáticas”, ser pauta entre países e atualmente uma notícia veiculada na mídia, precisamos observar com atenção que uma adaptação não está acontecendo, as metas de carbono zero não estão sendo cumpridas, o Fundo de Perdas e Danos decretado pela ONU na COP27 ainda não foi pago e a exploração, principalmente das grandes empresas, seguem fazendo acelerar a tempestade onde alguns estão de cruzeiro, outros de lancha e maior parte de nós – e do mundo – de canoa. As consequências da mudança do clima não são sentidas igual por todo mundo. O incômodo hoje bate na porta de zonas nobres e enriquecidas, mas a tragédia, as doenças e a morte já tem CEP e cor marcadas, como sempre. Não tem muito mistério, a irresponsabilidade é tão óbvia quanto preto no branco.

Alias, preto e branco são cores do estádio Nilton Santos, localizado no Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio de Janeiro. No último 17 de novembro, o local recebeu uma grande atração internacional e uma adolescente, de 23 anos, do Mato Grosso, veio a óbito, provavelmente por conta do calor. Ana Clara Benevides. Não é só um nome, ou uma estatística, mas uma menina, negra, que foi atrás de um sonho, com consentimentos dos seus pais, e teve a vida cerceada pelo racismo ambiental. A empresa responsável pelo evento, no dia anunciado como o mais quente do ano, envolveu o estádio em madeiras para forçar ainda mais a privatização do show e cobrou água a um preço não acessível, em uma logística não funcional. Água é direito, bem dizem os movimentos sociais já faz tempo. Água em copinho vendida por um valor acima de R$10 é violação de direitos. 

Esse fato fez muitos canais trazerem o assunto crise climática pro campo da cultura. Quando a notícia trata do caso de uma menina que foi  realizar o seu sonho em um grande show, um grande evento e morre por conta do calor, a gente não está falando só dessa menina, a gente está falando de uma política capital de fazer dinheiro sem considerar nem as pessoas, nem a mudança do clima, nem o planeta. Além desse pensamento não ter mais espaço na atualidade, é necessário disputar a narrativa do que é necessário para os fazedores e fazedoras culturais serem 1) responsáveis com seus eventos 2) responsáveis com o planeta 3) impulsionadores de um debate real sobre crise climática na sociedade. 

Outras pessoas vão morrer poque o capitalismo, ele, que já nasce falido, agora apresenta e impulsiona um outro risco, que é a do genocídio em massa por conta da crise climática. Para lidar com isso, é necessário uma adaptação coletiva enquanto sociedade. Ele, que nos trouxe tantas falsas soluções para problemas contemporâneos, hoje nos apresenta um dos maiores desafios que teremos que enfrentar enquanto humanidade. 

Qualquer problema social é um problema cultural. E por isso achamos que a indústria do entretenimento tem muito a refletir e a aprender com o movimento ambiental. Um bom exemplo é a relação com as cooperativas de reciclagem, que é extremamente superficial, criada para gerar números de resíduos encaminhados adequadamente e não para fazer com que a passagem por um evento de resíduo ou carbono 0 seja uma mudança de chave na vida das pessoas. É fazer tudo e ao mesmo tempo não fazer nada. 

“Mudanças do clima” não é um assunto de hoje. A seca e a poluição dos rios, o calor dos ônibus, a contaminação dos solos… Você certamente já viu algo assim perto de você. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, na publicação do relatório de agosto de 2021, constatou que as mudanças nos oceanos, nas geleiras e na superfície terrestre da Terra já são irreversíveis. A pesquisa “Crianças, Adolescentes e Mudanças Climáticas no Brasil” , publicada pela UNICEF em 2022, aponta que “40 milhões de jovens estão sujeitos a mais de um risco climático”. Esses dados não te preocupam?

A parada tá séria! Se “quase metade da população global vive na zona de perigo dos impactos climáticos” (IPCC, 2021), como pode os temas de adaptação, mitigação, fundo de perdas e danos, global stocktake, tudo isso que é responsabilidade das negociações da Conferência das Partes, estarem tão lentos? O novo relatório do IPCC, de 2023, pauta de forma bem direta o quanto a redução da emissão de combustíveis fósseis precisa ser prioritária. Ainda assim, o presidente Lula, em discurso para a sociedade civil na última semana, dentro da COP28, em Dubai, confirmou que o Brasil irá integrar a OPEP+, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo, pautando a transição energética. Esse grupo é apontado como um dos maiores mantenedores da indústria petroleira e da riqueza mantida através da exploração. Será que vai dar mesmo pra discutir transição verde ali? 

A sensação geral é que mesmo com todos os alertas, científicos e comprovados pela vivência das populações mais vulneráveis, nós estamos estagnados, inclusive na forma como lidamos com o meio ambiente e seus biomas. Lembram do REP FESTIVAL? Um festival numa localidade próxima a um manguezal que acontece apesar de uma previsão de chuva e vira uma calamidade pública. Onde tem mangue, com água, vira lama. Conta básica que o concreto nos faz esquecer. 

Para um evento ser sustentável, pensávamos em materiais recicláveis ou biodegradáveis, metas para gerar o menor número de resíduos sólidos possíveis, descarte correto de resíduo orgânico e reciclável e por aí ia. Hoje, copo eco, ecobag, papel semente, papel gráfico reciclável e outras soluções são somente o básico. Para entregar uma produção sustentável de verdade, precisamos pensar em estrutura, bem-estar do público, no planeta e na ferramenta incomparável que temos ali – muitas pessoas juntas. Agora não basta decidir se coloca lona ou não em caso de chuva ou sol forte. É necessário pensar na climatização do espaço, distribuição de água gratuita, permissões diferenciadas para entrada de águas e alimentos, redução de lotação e também educação ambiental e sensibilização perante a pauta climática. Teremos que pensar no tipo de material para cobrir o chão de um espaço, por exemplo, evitando estrutura de ferros e metais que esquentam com facilidade na área de circulação de público. E em como ocupar os espaços do nosso evento, com informações referentes a quem está fazendo a coleta do lixo ou alguma outra atividade relacionada ao viés ambiental. Dá pra fazer! Mas temos que repensar.

Precisamos repensar a forma de produzir com as mudanças climáticas e com o aumento extremo da temperatura. Quando analisamos a indústria do entretenimento, da economia criativa e da cultura, pensamos que as produtoras de maior porte, responsáveis por megaeventos, festivais e shows de grande porte, são as que possuem maiores condições de adaptação e de investimento. No entanto, não podemos esquecer das produções que dependem principalmente de editais públicos, que geralmente a faixa de aporte para música, eventos e festivais varia entre R$10.000 e R$200.000, como por exemplo os últimos editais lançados pela Lei Paulo Gustavo pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado do Rio de Janeiro. O orçamento dessas produções será impactado, e como pensar soluções de mitigação e adaptação sem comprometer a qualidade artística e técnica, sem precarizar o trabalho dos artistas e técnicos com faixas salariais abaixo do mercado. Logo, os editais e as exigências orçamentárias precisarão ser revisadas. Como que os governos pensam o papel da cultura no enfrentamento da gravíssima crise climática? Nossa Ministra da Cultura, Margareth Menezes, está assumindo um papel importante perante a ONU junto a outros chefes de estado na área cultural. É sobre isso!

Não adianta gerar a obrigatoriedade fiscal de cumprir com a tarefa de sustentabilidade sem checar a efetividade. Na área da acessibilidade e democratização do acesso, que são critérios de pontuação em editais públicos, já é possível perceber algo que é crucial: não adianta tradução em libras se o público que consome esse recurso não estiver presente. O mesmo para tradução simultânea, legendas, sinalização em braille… Se você garante a obrigatoriedade mas não garante o público para compartilhar disso, o que exatamente você está garantindo? 

Além disso, como já experienciado em Realengo, na Ocupação Parquinho Verde, e também em outros territórios de periferia e lutas históricas, como a campanha pelo Projeto de Lei de Iniciativa Popular Amazônia de Pé, a cultura é ferramenta e estratégia de mobilização. É ela que sensibiliza e torna possível construir caminhos diante da crise rumo a um futuro possível. Cultura e clima, o que tem a ver? Tudo. E é possível que alinhar esses dois caminhos seja peça fundamental do quebra-cabeça para enfrentar de verdade a crise e garantir justiça climática. O tempo do amanhã é agora. É tempo de ter a cultura como aliada, para ampliar o debate sobre crise climática e garantir condições de adaptação, também dentro desse setor, rumo à proteção do nosso direito ao lazer e de todos os trabalhadores e trabalhadoras desse setor.

Marcele Oliveira é cria de Realengo, da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Graduada em Produção Cultural pela UFF, atua como produtora, comunicadora e ativista climática. É mestre de Cerimônias do Circo Voador e Jovem Negociadora pelo Clima da Secretaria de Meio Ambiente RJ. Faz parte da Agenda Realengo 2030, que integra a Coalizão O Clima É de Mudança. Está no GT de Comunicação na Articulação por um Conselho Nacional de Juventudes pela Ação Climática e também constrói em conjunto a Conferência Nacional de Favelas. É liderança formada pelo curso de políticas públicas da Casa Fluminense e pesquisadora no âmbito de direito à cidade e participação social.

Taty Maria é produtora cultural, Mestra em Cultura e Territorialidade, pesquisa sobre memória, cultura e subúrbios, e é coordenadora de operações da Casa Fluminense.

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