Infâncias roubadas, número de casos de morte por disparos cresceu 23 vezes em 5 anos

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Texto por
Luize Sampaio
Data
24 de junho de 2022

Uma criança negra no estado do Rio de Janeiro com uniforme da escola, no portão de casa ou até mesmo na barriga da mãe corre risco. Dados da Secretaria Estadual de Saúde mostram também que o número de casos de morte por arma de fogo cresceu em 23 vezes desde 2017, passando de 4 óbitos para 94 no total. 

Enquanto esse tipo de crime aumenta, as pastas de investigação desses casos se acumulam nas gavetas das delegacias. Um levantamento da Defensoria Pública do Rio mostrou que, desde 2000, o estado acumula 10 mil inquéritos sobre mortes de crianças sem conclusão. Por toda a metrópole existem mães que aguardam por uma resposta final que ajude a explicar essa ausência diária. 

Jaqueline perdeu sua filha Kathlen Romeu grávida do seu neto que não pode conhecer

Renata perdeu sua filha e sobrinha, Rebecca e Emily,  no mesmo dia 

Dejanete perdeu seu filho há 5 anos e até hoje não encontraram o corpo 

Região Metropolitana do Rio é a mais perigosa para crianças

Nos últimos 5 anos, 80% das crianças e adolescentes mortas por disparo de armas de fogo no estado do Rio eram negros. Do total de 94 mortes, 91 ocorreram na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o maior número de casos nesses últimos cinco anos foram na capital com 52 óbitos e outras 12 em Nova Iguaçu. Segundo o levantamento, 2021 foi o ano em que mais crianças morreram, foram 45 só na Região Metropolitana do Rio. 

O levantamento da Casa Fluminense foi feito no dia 6 de junho, depois disso mais uma criança morreu baleada no Rio de Janeiro até a publicação dessa matéria. Em apenas seis meses,  2022 já contabiliza 19 mortes, são três infâncias perdidas por mês. 

Um desses casos de grande repercussão foi o das primas Emily e Rebecca, que morreram baleadas na porta de casa, em Duque de Caxias, no dia 4 de dezembro de 2020. O caso chocou o país e até hoje segue inconclusivo. Sem resposta, a família ainda precisa lidar com as sequelas emocionais. Renata Rodrigues, mãe da Rebecca contou como tem sido esse momento.

“A mãe da Emily não está nada bem e meu filho mais velho entrou em um estágio de revolta difícil depois que viu a irmã estirada no chão. A  família toda está sofrendo. O sorriso que tenho hoje nem parece que é meu, para mim é muito difícil. Não tem um dia que não pense na minha menina. Hoje tenho medo de deixar meus outros filhos brincarem aqui na porta e nenhum deles sai de casa se não for comigo junto ”, afirmou Renata. 

Em julho, Rebecca faria 9 anos. 

O andamento lento e a falta de conclusão dos casos é uma tradição no Rio de Janeiro. A pesquisa da Defensoria do Rio mostrou que desde 2000 o tempo médio de tramitação da investigação e conclusão do inquérito é de oito anos e três meses. Seguindo essa média, a família da Emily e Rebecca só terá sua resposta apenas em 2028. Essa conta serve para casos com inquérito aberto, mas há muitas mães que lutam para a garantia desse que deveria ser um serviço básico de justiça. Como é o caso da Dejanete Serra de Assis que perdeu seu filho há 5 anos mas ainda aguarda a abertura de um inquérito sobre a morte do seu mais velho,  Breno Vitorio de Assis, de 12 anos. 

Na certidão de óbito seu filho está como indigente 

Em um domingo no final de 2016, Dejanete foi para a igreja e deixou Breno em casa. Na volta não encontrou mais o menino. Se passaram 4 dias de busca no entorno até que um corpo em decomposição e todo partido fosse encontrado. Para a polícia aquele era Breno, mas só 5 anos depois, em 2022,  a mãe conseguiu fazer um teste de DNA. O laudo, porém, apresentou incompatibilidade entre o corpo encontrado e o material genético de Dejanete. A mãe agora voltou à estaca zero sem saber o que verdadeiramente aconteceu com seu filho. 

“Dizem que ele saiu com os amigos, mas ele ia e sempre voltava. Quando acharam o corpo não dava para reconhecer, eu cheguei perto e desmaiei. Travei essa luta na delegacia para conseguir fazer o teste de DNA para finalmente tirar do atestado de óbito do meu filho a palavra ‘indigente’, ele tinha mãe e documentos não podia ter esse fim. Agora me dizem que tem chances de nem ser dele o corpo e mesmo assim não tem inquérito aberto sobre”, afirmou a mãe.

Por enquanto, tudo que Dejanete sabe é que o filho foi assassinado a tiros em uma favela próximo ao bairro onde moram, mas não sabe onde está seu corpo nem quem e porque o menino foi morto. A mãe contou também que além da demora de cinco anos para conseguir fazer o teste de DNA é possível que tenha ocorrido erros na coleta e armazenamento do material do corpo encontrado. A mãe segue sem uma resposta final sobre o que aconteceu com seu filho. Sua luta agora é por uma indenização, ela explica seus motivos. 

“Não quero o dinheiro só por dinheiro, quero dar outra oportunidade de vida para meus filhos que ainda estão aqui vivos, proteger eles. Tenho medo de perder mais um”, contou Dejanete

A implantação de políticas e ações de reparação econômica, psicossocial e de direito à memória são algumas das propostas que Agenda Rio 2030 traz como essenciais no combate ao racismo estrutural. Essas e outras propostas apontam caminhos do eixo de Justiça Racial.

Divergência de dados 

As informações da Secretaria de Saúde  apontam um crescimento nas mortes de crianças e adolescentes baleadas. Esse cenário violento pode ser ainda maior do que os dados oficiais do governo do estado. A partir do monitoramento de notícias, denúncias nas redes sociais e canais oficiais de segurança pública, o Instituto Fogo Cruzado chegou ao número de 226 crianças e adolescentes mortas por disparo. O período desse levantamento é o mesmo daquele do governo, mas há uma diferença de 132 casos entre 2017 e 2022. 

Em uma perda dupla, Jacqueline perdeu a filha e o neto 

Em uma gravidez surpresa, Kathlen trouxe uma notícia de esperança para toda a família. Sua mãe, Jackeline Oliveira, contou que em meio a tantas perdas da pandemia, parecia que sua família estava sendo presenteada com a vida. 

“Logo que ela me contou a gente reuniu todo mundo para comemorar, em um momento tão ruim para todo mundo, nossa família estava aumentando. Estávamos todos muito animados, mas infelizmente foi negado o direito à vida ao meu neto, que nem pude conhecer”, lamentou Jackeline. 

Apesar das provas sobre a origem da bala e comprovação de mentiras nos depoimentos policiais, o Ministério Público ainda não abriu uma investigação e o inquérito do homicídio de Kathlen Romeu e seu bebê. A recém formada em design estava saindo da comunidade do Complexo do Lins acompanhada pela avó quando foi alvejada por um tiro de um policial. Kathlen tinha acabado de se formar em design e comprado uma casa nova.  A  mãe da vítima  contou que já existem indícios, até mesmo em vídeo, que comprovam que houve uma fraude processual na condução do caso e também provas de que os policiais envolvidos mentiram nos seus depoimentos.

“Se você não tem culpa, porque vai mentir? e outra, sabendo disso tudo porque o promotor do Ministério Público ainda não ofereceu denúncia?”

Os sonhos de toda a família foram atravessados por esse tiro, hoje, sua mãe luta para conseguir o básico: justiça para sua filha e seu neto.  A família pede para que o crime seja investigado também na esfera criminal, atualmente só existe uma auditoria militar interna em andamento. Em junho, o crime completou um ano. 

“Tudo que me pedem é calma. Como uma mãe que perdeu a filha vai ter calma? Eles tiraram a Kathlen e seu bebê da gente em segundos e agora tenho que esperar mais de um ano por uma resposta. A sensação que temos é que o Ministério Público está em silêncio para nos enfraquecer. Esse órgão deveria ser neutro, fazer uma investigação paralela e não deixar que a força do maior prevaleça. Mas a gente não vai se cansar nem parar de cobrar por justiça – isso é mínimo, eles nos devem isso”, afirmou Jaqueline. 

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