Água, saneamento e a Câmara Metropolitana do Rio

Texto por
Comunicação Casa
Data
1 de junho de 2020

por Henrique Silveira, coordenador executivo da Casa Fluminense

Osmar olhou por cima do mato alto e viu o esgoto correr no leito do córrego. Era possível observar a manilha despejar a água suja coletada nas casas do entorno, caindo diretamente no rio. Também dava para imaginá-la seguindo seu curso e encontrando outros rios poluídos até a sua foz, desaguando na Baía de Guanabara. A cena se repete em incontáveis bairros e comunidades na metrópole do Rio de Janeiro, ao ponto de dois terços do esgoto da região chegar sem tratamento na Baía de Guanabara. Esta realidade que insiste em não mudar ao longo de décadas faz com que o direito à água e ao saneamento básico pareça uma promessa vazia.

Córrego na Praia de Mauá em Magé. Foto: Léo Lima

A pandemia do COVID-19 e a necessidade de aumentar o cuidado com a higiene, como o simples ato de lavar as mãos, expõe o fato de muitas comunidades não contarem com este direito tão básico. Um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro mapeou quase 500 denúncias de falta d’água em 14 municípios. Na outra ponta do cano, observam-se rios transformados em valões a céu aberto e populações pobres vivendo nas suas margens, expostas ao risco de doenças provocadas pela falta de saneamento. E assim voltamos à questão inicial: por que não conseguimos universalizar o serviço de água e saneamento?

A resposta é longa e complexa, pois envolve o titular do serviço, modelos de concessão, financiamento, metas, regulação, fiscalização e controle social. Não é possível abordar todos os pontos neste texto, mas gostaria de tratar de alguns fatos recentes na discussão sobre saneamento básico no Rio de Janeiro que se relacionam com os itens acima.

O primeiro ponto é sobre o titular do serviço na região metropolitana. Se antes havia dúvidas (município ou estado?), o Estatuto da Metrópole e a Lei 184/2018 deixam claro que as decisões sobre o saneamento básico devem passar pela Câmara Metropolitana do Rio de Janeiro, formada pelo governador, os 22 prefeitos e três representantes da sociedade civil. Esse é o espaço para a tomada de decisões compartilhadas sobre o modelo de concessão do saneamento, delegando a prestação do serviço ao operador estatal (Cedae) e/ou privado. Ou seja, o município não pode decidir sozinho, ele precisa construir estratégias comuns com os demais. Por exemplo, a prefeitura do Rio de Janeiro tinha a intenção de fazer a concessão do saneamento básico na área de planejamento 4 (Barra de Tijuca e Jacarepaguá) de forma isolada, mas não conseguiu tramitar essa proposta na Câmara Metropolitana. A proposta aprovada foi apresentada pelo BNDES  prevê a elaboração de quatro blocos de concessão no estado. Nesse cenário, a Cedae ficaria responsável apenas pela captação e tratamento da água, enquanto a iniciativa privada faria a distribuição da água, a coleta e o tratamento do esgoto. A prefeitura do Rio e de São Gonçalo votaram contra, mas a maioria decidiu prosseguir com a proposta do BNDES.

A discussão sobre a concessão do serviço de água e saneamento, assim como a privatização de alguns setores da Cedae, é bastante polêmica. O papel da Câmara Metropolitana deveria ser de ampliar o debate, ouvir diferentes perspectivas e construir consensos, mas não foi assim que aconteceu. Para seguir com a proposta do BNDES, o governador precisa da autorização da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) para a privatização da Cedae. E por esse motivo, enviou para o parlamento o Programa Estadual de Desestatização. Caso seja aprovada, o BNDES pretende fazer a licitação para novas empresas de saneamento no final de 2020, mas essa proposta tem contraposição.

A campanha Água Boa para Todos e Todas, formada por organizações populares, pesquisadores, cidadãos e mandatos parlamentares, defende a água como direito humano e bem comum. Dessa forma, a necessidade de investimento para ampliar o sistema de água e esgoto em toda metrópole, incluindo as comunidades de baixa renda, não é compatível com o compromisso de gerar lucro para as empresas privadas. Essa contradição pode criar uma situação em que o serviço acontecerá apenas nas áreas com maior poder aquisitivo e retorno financeiro para as empresas, deixando as comunidades pobres sem atendimento. A campanha Água Boa para Todos e Todas afirma que o mercado não resolverá problemas de ordem pública e defende a retomada de investimento estatal em saneamento básico como estratégia de enfrentamento das crises hídrica, ambiental e sanitária.

Por outro lado, não são poucas as críticas feitas a atuação da Cedae nas últimas décadas. Falta de transparência, loteamento político, ausência de metas para o tratamento de esgoto e falta de água em muitos bairros, são algumas reclamações recorrentes. A companhia é uma empresa pública que gera lucro e pode cumprir um papel estratégico no Estado. Mas para isso ocorrer, é necessária uma mudança radical na sua estrutura e no ambiente de regulação e fiscalização.

Gráfico da pesquisa Saneamento 2020: passado, presente e possibilidades de futuro para o Brasil, produzido pelo Instituto Água e Saneamento (página 107).

Portanto, paralelo a defesa da Cedae como empresa pública, é necessário um novo comportamento de todos atores responsáveis pelo saneamento no Rio de Janeiro. O primeiro passo é a coordenação da Câmara Metropolitana para a definição das metas de expansão do saneamento básico e suas fontes de financiamento. Em seguida, é fundamental um papel pró-ativo das prefeituras para a celebração de contratos entre os municípios e a operadora do serviço, com a inclusão de metas de abastecimento de água e tratamento de esgoto, alinhadas aos planos municipais de saneamento. Os prefeitos e as câmaras de vereadores precisam assumir protagonismo no planejamento municipal e na fiscalização dos contratos, atuando para acompanhar e cobrar o cumprimento das metas estabelecidas. Outro componente importante é o fortalecimento da regulação, papel que deve ser cumprido pela Agência Reguladora da Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (AGENERSA) com a definição de normas para a prestação do serviço. Neste sentido, todo o processo deve garantir a transparência e o controle social da população, estimulando um novo ciclo de monitoramento cidadão sobre as metas, os prazos e os seus responsáveis. Sabemos que organizar e coordenar tudo isso não é tarefa fácil, mas não existe atalho. Somente juntando todas estas peças será possível avançar na agenda do saneamento básico e na direção dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável na metrópole do Rio.

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