por Jessica Lene*
Certa vez, em uma entrevista, a cantora Nina Simone afirmou a seguinte frase: “Liberdade é não ter medo”. Enquanto uma mulher preta e favelada nunca experimentei a liberdade plenamente. Por diversas vezes, vivenciamos o pavor sempre que ocorrem operações policiais nas favelas onde vivemos. Em meu caso, em Manguinhos.
Lembro da primeira vez em que participei de um movimento que despertou meu interesse pessoal por política, comunicação e problemas sociais no geral. Foi no ano de 2016, durante as ocupações das escolas estaduais do Rio de Janeiro, quando defendemos por três meses as melhorias necessárias para o Colégio Estadual Compositor Luiz Carlos da Vila, em Manguinhos, como a reabertura de sua piscina, entre outras demandas, que até hoje não foram solucionadas.
A discussão sobre o papel da comunicação na mobilização social é muito difundida, mas a popularização deste debate veio através das redes sociais e, principalmente, do trabalho de comunicadores favelados que buscam democratizar o acesso à informação e, também, disputar os discursos dos veículos da imprensa das mídias hegemônicas de nosso país.
A servir de exemplo de iniciativas de comunicadores favelados, o Laboratório de Dados e Narrativas na Favela do Jacarezinho (LabJaca), do qual faço parte, nasce logo nos primeiros meses da pandemia, quando os casos de covid-19 cresciam e os dados oficiais sobre os casos, o aumento do desemprego e outros índices não representavam a realidade da favela. O grupo é formado 100% por jovens negros que tem o audiovisual como carro chefe para divulgação científica dos dados e a potencialização das narrativas faveladas e periféricas, tornando a pesquisa acessível para a população.
Certamente, tivemos o protagonismo na última ação dos agentes do Estado ocorrida no Jacarezinho ao informar, logo pela manhã, através do nosso blog, que a operação ocorrida se tratava de uma das piores chacinas já ocorridas no estado. Portanto, os noticiários tiveram que tratar sobre segurança pública pela perspectiva da promoção dessas ações que só resultam em mortes. Estamos exaustos desse genocídio organizado e, principalmente, financiado com dinheiro público que deveria ser investido em projetos culturais, quadras esportivas e lazer para os moradores.
Para além dos dados e contrapondo esta política de morte, a narrativa que queremos construir deve ser capaz de promover sentimentos como a esperança, solidariedade e felicidade para os nossos. Por isso, com o intuito de colorir os becos e vielas, o LabJaca junto a Associação dos Moradores convidou diversos artistas que realizaram um mega grafitaço logo após a chacina. Esta ação mostra como os movimentos sociais do território estão garantindo a promoção dos direitos humanos e da justiça social, a fim de amenizar os impactos gerados pela pandemia e outras tragédias já anunciadas.
Assim como a comunicação, a educação popular é muito estratégica na luta por direitos e justiça, fundamental na garantia do acesso à universidade pública. É possível citar o Pré-Vestibular Popular Construção, que construo, e atua desde 2002 no território de Manguinhos. Atualmente recebe cerca de 300 inscrições para o curso, mas infelizmente pela ausência de um espaço físico próprio, o curso só consegue atender 150 estudantes. Temos também o Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem (NICA) é um núcleo de aprendizagem que entende a educação antirracista como ferramenta de mobilidade social. Em mais dois anos de existência, reforçam a importância de três frentes: pré-vestibular comunitário, projeto de alfabetização e núcleo sociocultural. Atualmente, buscam implementar a primeira biblioteca afrocentrada da América Latina.
Quando o assunto é arte como resistência, podemos citar a última exposição realizada no território, nomeada de Memórias Guardadas. O intuito dela é divulgar fotos antigas da favela e suas principais modificações após o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Realizei a curadoria através da Ong Casa Viva, da Rede CCAP, que atua há mais de vinte anos em Manguinhos promovendo diversos projetos como Escola de Música, responsáveis pela formação da banda Música na Calçada, que já recebeu convites para tocar fora do país.
Ainda no campo da arte e da cultura, temos o Ballet Manguinhos que foi criado há 7 anos e visa expandir o ensino de uma dança ainda bastante elitizada, além de gerar oportunidades para crianças e jovens, meninos e meninas da favela. Infelizmente, a pandemia e o negacionismo de Bolsonaro mataram a fundadora do Ballet Manguinhos, Daiana Ferreira, guerreira fundamental de nosso território.
Todos estes coletivos tiveram que lidar com o aumento da fome durante a pandemia. Por isso, o Manguinhos Solidário, coletivo organizado por Paloma Gomes, professora e também moradora de Manguinhos, arrecada e distribui alimentos até os dias atuais somente com a ajuda de amigos e outros coletivos da área. Este projeto tem sido fundamental para o enfrentamento à carência alimentar em Manguinhos.
Por fim, gostaria de reforçar nossa luta pela reabertura de espaços como a Biblioteca Parque Estadual, Casa da Mulher, entre outros projetos, que foram abandonados pela prefeitura e Estado do Rio de Janeiro. Parafraseando o samba de Nelson Sargento, também vítima dessa crise sanitária, moral e política, Manguinhos “agoniza mas não morre”. Seguimos por nossos mortos, por nossos amigos e familiares e, principalmente, por esse quilombo moderno que é a nossa favela.
*Jessica Lene é graduanda em pedagogia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, secretaria do Pré-vestibular Popular Construção, social media do LabJaca e aluna do Curso de Políticas Públicas da Casa Fluminense.