por Fabrícia de Sá Sterce* com colaboração de Maria Clara Salvador**
Quem nunca pegou um transporte coletivo lotado indo ou voltando pro trabalho? A Baixada Fluminense é uma das regiões-nutrientes da capital — assim como são outras periferias e favelas do RJ —, um grande alicerce econômico do Estado, projetada para se retrair em suas fronteiras. Somos muitas pessoas reunidas na região: a Baixada tem uma das áreas com maior densidade demográfica do país, nela encontra-se o equivalente a 23% de toda a população do Estado do Rio de Janeiro.
Ainda assim, as moradoras e moradores são estimuladas a tolerar em seu íntimo uma rotina de cidades-dormitório. Estima-se que aproximadamente duas de cada três pessoas daqui vivam um deslocamento diário para o trabalho; é onde um dos principais desafios da região se manifesta, a partir do movimento pendular das mulheres na Baixada e da precariedade do acesso aos meios de transportes públicos.
As práticas neoliberais de trabalho reforçaram as dinâmicas de participação de mulheres enquanto pilares dos grupos sociais. Provedoras de sustento enquanto chefiam seus lares em tarefas familiares e domésticas — o que suscitou nas últimas décadas muitos debates sobre a condição e a luta por direitos das trabalhadoras. Historicamente, o trabalho remunerado fez avançar o processo de emancipação de mulheres.
No entanto, é preciso continuar experimentando novas ideias de políticas públicas para melhorar as condições de vida e trabalho de mulheres, principalmente nas favelas e periferias. Na Baixada Fluminense, a influência das adversidades políticas intensifica problemas estruturais, como os altíssimos índices de violência contra mulher, falta de emprego e precariedade nos transportes públicos.
Quando o assunto é desemprego, sabemos que não está fácil pra ninguém. Em Queimados, por exemplo, a cada 100 moradores, só 10 trabalham de carteira assinada na cidade, enquanto metade da população trabalha fora do município. Porém, dados recentes do IBGE demonstram que o desemprego é maior entre mulheres, nós também ganhamos menos que homens, além de estarmos mais sujeitas à informalidade.
Além do isolamento geográfico, das falhas de infraestrutura pública e das diferenças entre gêneros, as cidades possuem uma formação histórica, espacial e social marcadas por um padrão de segregação racial. A maioria das pessoas da Baixada demora mais de uma hora para chegar em casa, de acordo com dados do Mapa da desigualdade 2020. A maioria dessas trabalhadoras e trabalhadores se identificam enquanto pessoas pretas e pardas.
Morar muito longe do trabalho e ter filhos pode atrapalhar nas entrevistas de emprego de mulheres. Quando conseguem, muitas não podem contar com a participação do pai de seus filhos. São mães-solo que precisam realocar suas rotinas por conta própria, para ter onde deixar suas crianças. São mulheres que lidam com uma jornada de trabalho fora e voltam para uma rotina de tarefas domésticas.
Um dos maiores pontos de tensão na vivência das mulheres que trabalham fora se apresenta no trânsito entre a jornada remunerada e o trabalho doméstico. São horas em transportes públicos lotados que esgotam a saúde psicológica e física dessas mulheres.
Cátia Cilene Cardoso é moradora de Santa Cruz — na Zona Oeste do Rio — e representou as mulheres que pegam trem durante a segunda sessão da CPI dos Trens, que está rolando na ALERJ. Ela relatou um pouco da batalha diária de mulheres que enfrentam os ramais em horários de pico:
“Só o tempo de viagem já nos deixa esgotadas. Nós não temos nem nosso vagão feminino, tanto indo quanto voltando do trabalho somos obrigadas a nos degladiar com os homens se quisermos viajar com um pouco mais de conforto, sentadas. Caso contrário, é do começo ao fim do ramal (em pé).”
Esses trajetos demorados, além de tomar o tempo e a energia das mulheres, geram dificuldade na administração familiar. Por consequência do machismo estrutural que concentra essas tarefas em mulheres, a sociedade não considera as tarefas domésticas como uma jornada de trabalho. Seus esforços são constantemente invisibilizados, fazendo desse sufoco uma barreira às suas possibilidades de participação em outros circuitos sociais. O que produz a paralisação das políticas públicas e dinâmicas do mercado por falta dessas mulheres em ambientes propositivos e de decisão.
A mobilidade é essencial para o direito à cidade, como espaço de realização da vida social. Enquanto o trem continua sendo a maior conexão entre as periferias e a capital, o que chama a atenção é o abandono da Supervia, as longas viagens, o número de passageiros em superlotações, as estações em péssima condição e sem acessibilidade.
Cátia nos conta durante a CPI que as condições de trajeto pioraram depois que a Supervia decidiu remover o expresso Santa Cruz, pouco antes da pandemia: “Hoje demoro de 2h a 2h30 por viagem. Com o expresso, era de 1h a 1h15. Tenho uma carga horária de 8h de trabalho, mas o que me cansa mesmo é a viagem.”
Apesar dos horários irregulares, os atrasos constantes e a redução das frotas, a Supervia prevê um aumento de R$2 na passagem dos trens, o segundo reajuste desde o início da pandemia. A tarifa agora vai a R$7. Por outro lado, Cátia relata que não teve nenhum aumento no valor das suas diárias. Pelo contrário, ficou mais difícil levar dinheiro pra casa.
A moradora da Zona Oeste é mãe de três filhos e recebe por faxina, é desse montante que tira sua passagem de ida e volta. Diante do aumento da tarifa, ela sabe que essa conta não fecha no fim do mês: “Tenho filhos que estudam. Eu que supro a passagem deles e não posso nem reclamar com meus patrões porque eles alegam que estão quebrados.”
Os danos à saúde física e psicológica dos passageiros de trem não são considerados na regulação da qualidade do serviço. É preciso monitorar as consequências na vida dessas mulheres principalmente, que passam o dia em pé para sustentar e gerir suas famílias. São trabalhadoras que têm seus corpos desumanizados e violentados pelo machismo, que se manifesta nos assédios, pisoteamentos e agressões físicas dentro dos vagões. São pouquíssimas as estações com banheiros, e quase nenhuma na Baixada e outras periferias do Rio com acessibilidade para todas e todos.
Apesar do cenário caótico, a busca por direitos e políticas transformadoras para as periferias continua reivindicando estruturas de mobilidade pública que ofereçam condições justas e equitativas de acesso à cidade. A CPI dos Trens está discutindo ideias e propostas feitas pela Casa Fluminense e pelo Observatório dos Trens — uma organização da sociedade civil composta por mulheres da Baixada, que vieram da luta por direitos para apresentar diagnósticos profundos e melhorias necessárias.
O que esperamos é menos tempo de viagem, tarifas justas e melhor qualidade de serviço nos trens e estações. Cátia é uma mulher preta e esteve na CPI representando as mulheres trabalhadoras, da periferia, que passam por isso todos os dias. Quando afirma: “Aceitei esse convite acreditando no que essa CPI pode melhorar pra nós, até porque vai haver o aumento na tarifa, nada mais justo que tenha também melhorias”, ela está exigindo o mínimo dos seus direitos.
Que nós possamos ouvir cada vez mais mulheres como a Cátia, que suas histórias e propostas ocupem espaços de diagnóstico e decisão nas esferas públicas. Para nós, mulheres que pegamos o trem na Baixada, uma das estratégias importantes é monitorar a CPI, para impulsionar as investigações a respeito dos investimentos que a Supervia deveria ter feito. Queremos entender o que foi feito com o dinheiro das nossas viagens. Queremos condições dignas de chegar nos nossos trabalhos e nas nossas casas, é o mínimo.
*Fabrícia de Sá Sterce é artista e formada em jornalismo. Coordena a Visão Coop, um laboratório de tecnologias sociais que trabalha em agendas 2030 para o desenvolvimento territorial da Baixada. É moradora do complexo do São Simão e associada da Casa Fluminense. Desenvolve um trabalho de pesquisa e memória para reconhecer e potencializar o território. Anteriormente produziu o Cine Qm2 e fez residência de grafite com a Rede Nami.
**Esse texto contou com a edição de Maria Clara Salvador. Maria Clara é graduanda em Filosofia na UERJ, escreveu para a Agência de Notícias das Favela – ANF, foi mobilizadora do gabinete contra as enchentes em 2020 e trabalha na Visão Coop.