Instabilidade emocional, insegurança alimentar e arte

Categorias
Texto por
Comunicação Casa
Data
19 de abril de 2021

por Malê*

“Nos espremeram até o bagaço para refrescar a elite, já fomos os maiores produtores de laranja do mundo e pra gente não sobrou nenhum requinte!”

Este verso é de uma poesia minha, que faz muito sentido quando paramos para pensar o quanto a Baixada Fluminense produz com qualidade, mas não consome com a mesma. A insegurança alimentar rodeia, desde o morador em situação de rua, ao proletariado, passando pelos artistas independentes, chegando aos agricultores da região, que produzem alimentos sem agrotóxicos e sem mão de obra explorada. Essa insegurança com certeza se faz mais presente durante a pandemia, mas desde antes do fim do mundo, nós já víamos a necessidade de uma alimentação de qualidade para o desenvolvimento social da região.

E quando eu digo “nós”, para ser mais específica, estou falando de amigos e integrantes dos movimentos do qual faço parte. Por exemplo, o Coletivo F.A.L.A. (Fábrica de Apoio a Linguagem Artística) que por volta de 2015, depois de já iniciar a produção de espaços artísticos, pensava minimamente em como apresentar a agricultura familiar do próprio território, mostrando como alimentos agroecológicos podem ser acessíveis e as vantagens do consumo. Nessa época, montamos barraca dentro da feira tradicional do bairro Lote XV (divisa entre Duque de Caxias e Belford Roxo) com alimentos produzidos no bairro vizinho (Amapá) no Assentamento Terra Prometida, a ação se chamava ‘Feira na Feira’ e contava com música, exposições e troca de ideias com os moradores; ao longo dos anos, no projeto Artistando na Pracinha, arrecadamos alimentos — em troca de cortes de cabelos e oficinas — e distribuímos entre as famílias em situação vulnerável das crianças que participavam; já a Batalha do Raul Cortez — batalha de Mc’s que aconteciam às terças-feiras, antes da pandemia, na Praça do Pacificador, no Centro de Caxias — houve a necessidade de fazer uma ação em prol dos moradores em situação de rua que residem na praça. E então, iniciamos um Sopão, produzido pela Tia Jussara — mãe de um dos integrantes — , somado a algumas doações e servido pela produção, após as batalhas semanais. 

A necessidade de realizar essas ações aumentou significativamente. Em tempos de pandemia, o que era para complementar a alimentação ou melhorar a qualidade da mesma, se tornou necessário para sobrevivência! Artistas e produtores da região, foram prejudicados cruelmente — não que antes houvesse um grande investimento para a nossa classe, mas a instabilidade financeira se tornou emocional. Quando a maior preocupação é sobre o que vai comer ou se vai ter o aluguel de onde mora, fica quase impossível se manter produtivo e criativo. Falando em produção, as famílias de produtores agroecológicos também tiveram um grande impacto nas vendas e produção, entrando para o mapa de insegurança alimentar, uma infeliz ironia. Já a população em situação de rua aumentou, enquanto que as doações diminuíram, um verdadeiro show de horrores.

Mais uma vez, tudo que nos resta, é nós mesmo!

Nossa rede é incrível e muito potente. Logo no início da pandemia, nos conectamos ao Movimenta Caxias, que se propõe a alcançar melhorias para a cidade. A partir disso, foi possível multiplicar o Sopão aos moradores em situação de rua, oferecer proteção através de máscaras e álcool em gel, além da distribuição de agasalho e o início de um mapeamento dessa população. Ainda junto ao Movimenta Caxias, que fez uma das maiores campanhas de distribuição de cestas básicas e alimentos orgânicos em 2020, foi possível auxiliar famílias que se tornaram ainda mais vulneráveis, inclusive famílias de artistas que chegaram ao nosso radar com essa necessidade. 

Junto à Casa Fluminense, colocando em prática a Agenda Rio 2030, o Coletivo FALA preparou a I Mostra de Artes Virtual, que contemplou 30 artistas residentes da Baixada Fluminense com uma ajuda de custo de R$ 150,00 e 1 cesta de alimentos orgânicos, do Raiz Orgânica Agricultura — avançando no plano de tornar possível o acesso à agroecologia. Além de estimular os artistas a continuarem, a I Mostra de Artes foi como um acalanto para que todos saibam que não estão sozinhos, e que tudo que nóis tem, ainda é nóis, como bem lembra o Emicida.

Por aqui, seguimos o desafio de nos mantermos conectados, firmes, apesar de todos os pesares que colocam sobre nossos ombros. Sabemos que não é nossa a responsabilidade de dar fim à fome da população, mas como a arte tem o poder de nos fazer imaginar aquilo que ainda não existe na realidade, nossa maior pretensão é que a Baixada forme um cinturão verde de produção agroecológica para abastecer a Região Metropolitana.

* Malê é produtora cultural, poetisa, comunicadora e artivista do movimento hip hop na Baixada Fluminense. Também faz parte do Coletivo FALA e o Movimenta Caxias.

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