Vulnerabilidade e sobrecarga: o custo do cuidado para mulheres negras

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Texto por
Carín Nuru
Data
18 de setembro de 2024

Todo mundo tem na memória uma figurinha feminina que demonstrou  durante a vida o que era o cuidado. A ajuda com a tarefa escolar, a comida servida, o acompanhamento ao médico, a roupa lavada. Seja cumprido pelas mães, avós, irmãs, ou associado às tias da cozinha, as moças da limpeza e a enfermeira do posto, sempre existiu uma mulher representando e exercendo o que se descreve como cuidado. Esse trabalho invisibilizado – que está presente no dia a dia de todas as pessoas – vale pelo menos 8,5% do PIB brasileiro.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) apontou que as mulheres gastam 8 horas semanais a mais do que os homens em afazeres domésticos ou em tarefas de cuidado de pessoas. A PNAD ainda acrescenta que as mulheres negras dedicam 1,6 horas a mais por semana do que as brancas. Esse tempo gasto pelas mulheres para a garantia da vida faz parte do que é a economia do cuidado e sustenta esse trabalho não remunerado, ou de remuneração desviada, como descreve a especialista em Política do Cuidado e doutora em serviço social, Thamires Ribeiro.

Thamires é cria de Senador Camará, periferia da zona oeste do Rio de Janeiro, atua como pesquisadora no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é professora universitária e estuda como se dão as relações de cuidado no âmbito das famílias negras, periféricas e faveladas. Durante o mestrado, a pesquisadora estudou como a perspectiva de cuidado pensado e do cuidado vivido, se esbarram e criam um processo de culpabilização em mulheres negras.

“Sentia que as mulheres estavam em um processo de culpabilização por não estarem cuidando da maneira que gostariam, mas elas não tinham outra forma de fazer isso. Essas famílias tinham uma noção de cuidado pensado, idealizado a partir de uma perspectiva cis, heteronormativa, eurocentrada e pautada em uma estrutura cristã. Vi que esse cuidado pensado contrastava com o cuidado vivido. Tinham dimensões que adensavam as camadas desse cuidado no cotidiano dessas mulheres, e elas se sentiam muito culpabilizadas justamente pela idealização de como deveria ser esse cuidado”, explica a pesquisadora.

Thamires Ribeiro no Fórum Rio 2024

Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, nenhum município possui uma secretaria ou plano que olhe para a política do cuidado, considerando o aumento da cobertura de assistência ou a criação de programas que se responsabilizem pelo trabalho do cuidado, diminuindo a sobrecarga dessas mulheres. “Um dos grandes mecanismos de culpabilização é justamente a ausência do estado em relação às políticas públicas. Por elas não terem esse suporte do estado, elas tem que dar um jeito para cuidar e esse jeito é envolvido de culpabilização por não dar conta de tudo”, completou Thamires.

As mulheres vivem em uma situação de sobrecarga, acúmulo de jornada e vulnerabilidade. Quando se fala sobre economia do cuidado dentro da realidade de mulheres negras de favelas e periferias, é preciso colocar na conta que além do tempo gasto em tarefas domésticas, elas participam menos do mercado de trabalho e são mais afetadas pela pobreza. Segundo o Mapa da Desigualdade, publicado pela Casa Fluminense, na região metropolitana do Rio de Janeiro, são cerca de 1,6 milhões de mulheres negras vivendo em pobreza ou extrema pobreza, ao mesmo tempo em que 15 dos 22 municípios ultrapassam o limite de 5.000 famílias cadastradas por unidade do CRAS.

Carla Felizardo é uma mulher negra, moradora de Vila Kennedy, periferia da zona oeste do Rio de Janeiro, é grafiteira, empreendedora e mãe atípica. Ela é a principal responsável pelo cuidado da sua filha, que tem uma total dependência de alguém para realizar seus cuidados básicos, e do pai, que está chegando na terceira idade com problemas de memória. Carla faz parte do número de mulheres negras que não são assistidas pelos equipamentos de políticas públicas, como o Cras, por exemplo, e tem uma responsabilidade total sobre o cuidado da sua família e da sua casa.

“Hoje ela (filha de Carla) não faz nenhum tipo de tratamento, e sei que posso estar errada com isso, mas preciso trabalhar e fazer outras coisas. O que dedico a ela é levá-la para a escola e ter a rotina diária do cuidado em casa. Ela chegou a uma idade adulta fisicamente, mas ela é uma criança, então ela não sabe ter os cuidados básicos de higiene. A outra parte do cuidado é cuidar do meu pai que tem 80 anos, já está senil e a memória recente dele está falhando”, conta Carla.

A realidade que a empreendedora vive traduz o enredo de cuidado de muitas mulheres negras, que Thamires descreve como a encruzilhada do cuidado, que é estruturado por quatro principais eixos: a familiarização, a feminilização, a mercantilização e a racialização do cuidado. As faltas de políticas de apoio a essas mulheres, geram sobrecarregadas físicas, mentais e emocionais, em muitos casos elas dão conta sozinha do cuidado e se veem nessa encruzilhada, onde os governos se isentam das responsabilidades. As mulheres negras são mais afetadas pelas desigualdades na educação, no mercado de trabalho, na renda e as menos representadas por propostas e políticas que as alcançam.

“Eu nunca soube o que era CRAS, vim saber tem pouco tempo. Se você não tem acesso a uma política pública que pauta o seu direito, que vai cuidar de você, você não tem nem ideia do seu direito. Os serviços não nos alcançam. Tem um CRAS aqui (Vila Kennedy), mas ele está no território? Ele vai nas escolas? Ele busca as pessoas? Porque se eu não conheço, como eu vou buscar? E em relação à atenção básica eu também me sinto sem acesso aos meus direitos”, pontua Carla.

Lideranças femininas a frente do cuidado

Em 2020, durante a pandemia da covid-19, o trabalho do cuidado se tornou o foco de muitos debates, e o questionamento “Quem cuida de quem cuida?” ficou viral nas redes sociais. Diversas lideranças se viram com a missão de acolher seus territórios, em um momento em que o poder público não estava alcançando principalmente as favelas e periferias. Foi nesse contexto que surgiu a Casa Cuidado, no Parque Paulista, em Duque de Caxias. Um espaço que nasceu do desejo de desenvolver a cultura do cuidado, da escuta e do acolhimento para mulheres do território. O projeto é realizado por onze pessoas voluntárias, entre elas, dez são lideranças femininas. A pedagoga e uma das fundadoras do Casa Cuidado, Cyntia Matos, desenvolveu a metodologia do cuidado, uma dinâmica de acolhimento às mulheres que vivem a sobrecarga nas suas rotinas.

“Só hoje, depois que a gente implementou a Metodologia do Cuidado, que eu tive a dimensão do que é esse espaço. A Casa era um lugar que a gente cuidava das pessoas muito no automático, mas pensar que agora existe uma política nacional do cuidado sendo desenvolvida, que nós mulheres fazemos essa função a vida toda, de cuidar do filho, do marido, da casa, do material escolar. Nessa dimensão do cuidado eu nunca tinha parado pra pensar”, compartilhou Cyntia.

(Cyntia apresentando a metodologia)

Para muitas mulheres, chefes de famílias e donas de casa, o cuidado ainda representa uma obrigação, que reflete em sobrecarga e culpabilização. Para o Estado ele ainda está se tornando uma política. E para lideranças femininas cis ou trans, o cuidado é o principal caminho de apoio aos seus territórios e comunidades.

“Entendo que esse lugar do cuidado é central para a vida das pessoas. Cuidado é atenção. Para mim, a economia do cuidado, para além da atenção, é uma economia que você precisa perceber o tempo que você tem disponível para você e para a outra pessoa”, completou a fundadora da Casa Cuidado.

São lideranças como a Cyntia, que se colocam no lugar de dividir com essas mulheres e famílias o custo, e principalmente o tempo, que o trabalho de cuidado exige. Sem pensar em como isso pode impactar suas próprias vidas e rotinas de cuidado, lideranças de diferentes pontos da região metropolitana fluminense ocupam hoje o papel de ser uma rede de apoio nos seus territórios. Organizações como a Casa Dulce Seixas em Nova Iguaçu, Niyara de São Gonçalo e A.M.I.G.A.S de Itaguaí, alcançam espaços que o poder público não chega, com apoio, políticas ou direitos. Sejam as lideranças, pessoas voluntárias ou as mulheres alcançadas pelos projetos,  esse cenário reflete em 32% das mulheres negras não conseguindo ingressar no mercado de trabalho devido às responsabilidades que elas têm com o cuidado, segundo a nota informativa publicada pela Secretaria Nacional de Cuidados e Família.

O Cuidado no Centro da Política

No dia 3 de julho de 2024, o Governo Federal do Brasil encaminhou ao Congresso o Projeto de Lei Nº 2762/24 que institui a Política Nacional de Cuidados, um marco para o reconhecimento do cuidado como trabalho, direito social e responsabilidade do Estado. O projeto foi desenvolvido pelo Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), formado em 2023 pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e Ministério das Mulheres, que contou com a participação de mais de 20 órgãos do governo, como o IBGE, Fiocruz e o IPEA. A proposta estabelece que o Poder Executivo Federal elabore o Plano Nacional de Cuidados, de forma transversal e intersetorial, com ações e metas, em articulação entre a União, estados e municípios.

Lideranças e organizações da sociedade civil vem discutindo a Política Nacional de Cuidado e quais seriam os caminhos ideais para a implementação do Plano, considerando principalmente a realidade de mulheres negras, faveladas e periféricas. No dia 19 de agosto, aconteceu o evento “Cuidado no Centro da Política”, realizado pela Casa Fluminense, o Instituto Procomum, Instituto Alziras e Puxadinho, instituições que organizaram a roda, para trocar sobre a Plano Nacional de Cuidados, ouvir quem vive o cuidado diariamente e dar um passo em direção à uma política mais coletiva.

Evento Cuidado no Centro da Política

A política quer garantir o acesso ao cuidado para quem precisa, apoiar a melhoria dos direitos de trabalhadoras e trabalhadores remunerados do cuidado, e impactar na redução da sobrecarga para quem exerce o cuidado não remunerado. Durante o evento, todos esses pontos foram discutidos em uma conversa que contou com a presença de lideranças, organizações sociais, movimentos da sociedade civil, pesquisadoras e representantes do governo. Luana Pinheiro, Secretária Nacional da Política de Cuidados e Família do MDS, participou do evento e compartilhou sobre a construção da política.

“A gente tinha um desafio de limitar e pensar que existem várias concepções sobre cuidado, mas essa política precisava ter um foco específico. Que cuidado é esse que a gente tá falando? E aí, a gente construiu um conceito que identificava o cuidado como um trabalho de produção de bens e serviços que são essenciais para a reprodução cotidiana da vida, esse trabalho que nos permite estarmos vivas e que é a sustentação da sociedade. Era desse cuidado que a gente estava falando e esse foi um acordo construído no nome desse grupo de trabalho, que defendeu ser a partir daí que a gente ia conversar para a construção da Política e do Plano Nacional de cuidado”, compartilhou Luana.

Luana Pinheiro durante o evento Cuidado no Centro da Política

A política está sendo entendida como parte dos direitos sociais de todo cidadão que, pensando em uma dimensão do direito a cuidar, de ser cuidado e do autocuidado. A pesquisadora, Thamires, entende que a política deveria entrar como quarto pilar da Seguridade Social no Brasil, que hoje é dividida entre: saúde, assistência e previdência. 

“Na realidade esse quarto pilar é invisibilizado. Se eu tenho por exemplo o Cras funcionando é porque eu tenho principalmente mulheres negras indo lá para ter um benefício, levando seus filhos e as pessoas que precisam ser cuidadas pela política. A política de saúde é a mesma. Essa centralidade na família  invisibiliza uma centralidade na mulher que faz esse trabalho de forma de remuneração desviada, porque é ela que vai levar as pessoas para esse Centro de Atendimento, para a educação, saúde, lazer, seja o que for. Essa Seguridade Social já centraliza um quarto Pilar, só que esse quarto Pilar é invisibilizado. Esse direito precisa entrar na Seguridade Social e precisa partir da experiência de mulheres negras”, compartilhou Thamires.

A Política do Cuidado na prática!

O Uruguai possui uma Política Nacional do Cuidado desde 2015, que pensa principalmente em ações focadas para crianças, idosos, pessoas com deficiência e responsáveis pelo cuidado. Entre as propostas da política, o Uruguai coloca a criação de Centros de Atenção Integral à Infância e Família, Casas Comunitárias de Cuidados e Licenças Parentais. Hoje, a América Latina é um grande espelho na movimentação a favor da Política do Cuidado, tendo também a Argentina como exemplo. Segundo Luana, esse cenário potencializou a discussão e construção da política aqui no Brasil.

“A gente vivia no começo do ano passado e até hoje, na América Latina, uma profusão de experiências e discussões sobre o tema, e a gente estava no Brasil de certa forma atrasado trazendo esse tema para a agenda do governo. Era um tema histórico tradicional dos movimentos sociais, movimentos de mulheres, mulheres negras, muito pujantes na academia, mas a gente não tinha conseguido ainda trazê-lo para o centro do debate e colocando o Estado na discussão também, como outros países vizinhos. Então, esse era um contexto que a gente tava, o país cercado dessa discussão e a gente meio insulado no âmbito governamental”, compartilhou Luana sobre o início das movimentações da Política Nacional do Cuidado.

A Casa Fluminense, junto de organizações parceiras, sua rede de lideranças e especialistas, produziu uma nova edição da Agenda Rio 2030. Uma publicação que projeta um futuro possível para a metrópole do Rio de Janeiro, a partir de dez políticas públicas prioritárias para as cidades. Entre as propostas, a Política do Cuidado é uma das prioridades da Agenda, que projeta a construção de um espaço de participação social integrado às secretarias de trabalho, saúde, educação e assistência social.

Luize Sampaio, coordenadora de informação da Casa Fluminense, esteve na linha de frente da construção da Agenda. Ela compartilhou a importância dessa política pensando na metrópole do Rio, mas também projetando como uma possibilidade a nível nacional.

“O cuidado precisa estar no centro dos planejamentos para as nossas cidades, estado e nação já que é o cuidado que nos garantiu vivos até aqui. Todos os dias, para nossa economia girar, antes e depois estão as cuidadoras assentando esse caminho. Cuidar dessas trabalhadoras é garantir um futuro mais justo para toda a sociedade”, explicou Luize.

(Luize Sampaio no Lab Sul x South)

Na proposta, a Casa Fluminense apresenta um passo a passo que direciona as gestões municipais para  a implementação da Política do Cuidado que, segundo a Agenda, é um caminho principalmente para a diminuição da sobrecarga feminina, remuneração dessas trabalhadoras e queda na taxa de desemprego.

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