Entre os maiores estados do país, o Rio de Janeiro encontra-se na lanterna, quando o assunto é regulação de sua principal empresa prestadora de serviços de saneamento, a Cedae. O processo de regulação teve início em 2015. Principal acionista da companhia, o Governo do Estado, por meio de decreto, colocou a tarefa nas mãos de outra instituição pública que lhe pertence, a Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa). É o início de um longo caminho que, afinal, tinha de começar de algum modo. Porém, segundo a Lei Federal de Saneamento Básico (11.445/2007), quem deve decidir o ente regulador é o município e não o Governo do Estado. Mas as contradições e os desafios desse processo não param por aí.
Leia as considerações de Ana Lúcia Britto, professora associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Prourb/UFRJ), e pesquisadora do Observatório das Metrópoles, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (IPPUR/UFRJ). Em entrevista para o ForumRio.org, ela cita caminhos trilhados por outros estados e os desafios para o Rio.
Como a senhora avalia o processo de regulação da Cedae?
AB: Em primeiro lugar deve-se olhar um pouco sobre a capacidade real da Agenersa regular a Cedae, porque se trata de uma agência com pouquíssimos técnicos de regulação concursados e esta é uma formação específica. Há pessoas muito bem formadas na Agenersa, mas chega a ser quase uma piada o quadro técnico existente para efetuar uma regulação de uma empresa do tamanho da Cedae.
Por outro lado, a Cedae é uma empresa que sempre teve como característica a ausência de transparência. Se você entrar no site de qualquer companhia de cidades de porte, como Copasa (de Minas Gerais), Sabesp (de São Paulo) e Caesb (do Distrito Federal), você verá uma série de informações que não serão encontradas no site da Cedae. Por exemplo, qual é o modelo de tarifa social da Cedae? Onde está isso? Como uma pessoa, que acha que tem direito, vai demandar uma tarifa social? A Cedae diz que deixa liberado, que nas favelas ela não cobra, não bota hidrômetro, não coloca [o cliente] na Justiça, que esse é o modelo de tarifa social. Mas as coisas não funcionam assim.
O fato de a Agenersa pertencer ao Governo do Estado, assim como a Cedae, não gera um conflito de interesses?
Tem uma discussão muito séria sobre isso. A questão da independência do regulador é muito complicada também nos outros estados. Por exemplo, em São Paulo, a Arsesp (Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo) tem uma relação muito próxima com a Sabesp [que é regulada por ela], porque os técnicos circularam de uma instituição para a outra. Esse grupo de engenheiros sanitários é muito pequeno.
Além disso, a Sabesp, quando fecha um contrato, já quase que embute nele a regulação pela Arsesp, mas há opção e quem deve escolher o regulador é o município. Em São Paulo existe o consórcio PCJ (Consórcio Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí). Eles resolveram criar uma agência reguladora intermunicipal e fazem a regulação de vários municípios servidos pela Sabesp. Ou seja, eles criaram uma alternativa a Arsesp. Santa Catarina fez o mesmo, tem a Aris (Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento), que reúne 178 municípios do estado. Há também outra que atende a região de Blumenau (Agência Intermunicipal de Regulação do Médio Vale do Itajaí) e a agência do Governo do Estado. Minas Gerais também conta com uma alternativa intermunicipal à agência criada meio que como braço da Copasa.
O estado do Rio não pode seguir esse modelo?
No Rio, há uma questão muito mais política, que está acima dessa discussão, que é a mega subordinação dos municípios ao Governo do Estado. Há uma história que vem lá do chaguismo, do clientelismo, da estrutura do PMDB, que está na base do paternalismo e do clientelismo com os municípios. Isso faz com que estes estejam sempre a reboque das decisões do Governo do Estado. Não há um movimento municipalista forte no Rio de Janeiro, enquanto Santa Catarina e Minas possuem.
Outro ponto controverso é a regulação da Cedae pela Agenersa em municípios que não delegaram essa função à Agência. Como fica?
A lei 11.445/2007 diz que cabe ao município escolher o seu ente regulador. Porém, quando os municípios renovaram os contratos com a Cedae – a maior parte deles entre 2009 e 2010 – a companhia o fez de forma completamente ilegal. Primeiro porque os municípios não tinham Plano Municipal de Saneamento. Os contratos deveriam ter como base os planos, mas o que está anexado a eles é o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, então é ilegal. É óbvio que os municípios ou o Ministério Público não vão entrar na Justiça contra o Governo do Estado, porque também o MP tem uma série de ligações com o governo estadual. Então temos uma estrutura que, com relação aos parâmetros que regulam o tema, que são a lei de 2007 e o decreto que regulamenta a lei, de 2010, aqui no Rio está tudo errado. E não há uma sociedade civil organizada para ir à Justiça questionar os contratos, nem tem um município que queira regulação por uma agência intermunicipal.
Mas não é de se esperar que isso mude e que os municípios do Rio sigam o modelo dos outros estados?
Eu acho que não temos ambiente político no Rio de Janeiro para isso, nem por enquanto nem nos próximos anos. A trajetória institucional e política do Rio é muito diferente da de São Paulo, Minas… Talvez seja parecida com a do Ceará. Isso não se rompe facilmente. Você não vai criar um município forte e autônomo, até porque, para isso, precisa haver recursos financeiros, capacidade fiscal de arrecadação. Autonomia política municipal vem junto com um reforço de municipalismo, que não temos no estado em função da própria história político-administrativa, e que vem junto com a capacidade fiscal e financeira dos municípios, que é muito fraca no nosso estado. Não vejo cenário de mudança.
Focando essa observação na Região Metropolitana do Rio, o panorama fica pior ainda?
É um pouco mais grave, porque, fora Duque de Caxias, que tinha uma capacidade de arrecadação maior em função do petróleo, os outros municípios apresentam uma série de problemas de estrutura político-administrativa. Vamos dar um exemplo: qual técnico da prefeitura de Japeri terá capacidade de olhar um contrato com a Cedae e os instrumentos de regulação, acompanhando isso corretamente? Difícil.
Reconhecendo isso, mas vislumbrando outra trajetória, o que deve ser feito? Ações em curso como um novo sistema de governança para a Baía de Guanabara, por exemplo, são caminhos válidos?
Deve-se fazer duas coisas que parecem contraditórias: ao mesmo tempo reforçar a ação do Governo do Estado no sentido de criar instâncias de articulação, como essa da possível governança da Baía de Guanabara, porém sem municípios subordinados ao Governo do Estado. E é também reforçar a capacidade político-administrativa desses municípios. É ter uma lógica de escola de governo, de capacitar os municípios para que se tornem mais autônomos e tenham força para resolver suas questões. O Governo do Estado tem um papel importante, mas não pode ser paternalista e clientelista; apoiá-los para que se autonomizem e não para torná-los aliados ou dependentes políticos.
Mesmo com todas as dificuldades, a Agenersa já está regulando a Cedae, inclusive fazendo consultas públicas sobre suas propostas a respeito dos procedimentos de fiscalização. Como a senhora vê esse processo?
Na área da Prolagos [concessionária responsável pelos serviços de saneamento básico de Cabo Frio, Búzios, Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia e pelo abastecimento de água de Arraial do Cabo], a Agernersa consegue trabalhar corretamente, mas o número de municípios é muito menor do que os atendidos pela Cedae [64 no total]. Ainda assim, é ótimo ter autorizado a Agenersa a regular a Cedae. Por exemplo, as consultas públicas são iniciativas bacanas, mas outras coisas podem ser feitas, como divulgar os contratos assinados com os municípios. A Cedae não divulga, mas sei que os contratos não tem meta, nada. A Lei de Saneamento estabelece o que deve constar num contrato, porém os da Cedae não têm.
É possível esperar cobranças de uma agência que pertence ao próprio estado, que está em crise?
É difícil.
Para saber mais sobre os obstáculos à universalização e justiça social na oferta dos serviços de saneamento, confira o artigo A gestão do saneamento ambiental no Rio de Janeiro: entre o mercado e o direito, escrito por Ana Lúcia para o livro “Rio de Janeiro: transformações na ordem urbana”, lançado pelo Observatório das Metrópoles.