As demandas pelo aprofundamento dos canais de transparência e a criação de espaços de participação social tem sido alguns dos principais pontos da pauta política na esfera da sociedade civil fluminense nos últimos tempos. A metrópole é reconhecidamente marcada pela baixa tradição e uma ausência histórica de mecanismos de participação. Mudar esse cenário, no entanto, não parece estar no horizonte de prioridades, tanto na capital, quanto no conjunto do estado.
O Encontro Casa de fevereiro teve como tema os desafios à participação social no Rio. Realizado na sede da Anistia Internacional Brasil, a reunião propôs um debate em torno das seguintes perguntas: que práticas tanto do ponto de vista da mobilização da sociedade civil, quando do ponto de vista da institucionalidade pública, deveriam ser criadas para dar conta das demandas de participação? Quais experiências podem ser adotadas no intuito de avançar na superação dessa tradição pouco pautada pelo diálogo?
Dando início à conversa, Eduardo Alves, diretor do Observatório de Favelas, contou sua trajetória política. Nascido na Vila da Penha, Eduardo foi militante do Partido dos Trabalhadores (PT) dos 16 aos 25, tendo sido assessor da Confederação de Servidores Públicos do Brasil. Acabou deixando o partido e tornou-se chefe de gabinete do deputado estadual Marcelo Freixo, até meados de 2013. No Observatório há quase um ano, Eduardo diz que apesar de sua formação ter sido muito influenciada pela esquerda partidária, seu lugar de fala hoje é a sociedade civil. Fazendo o balanço dos seus anos de vida pública, ele acredita que as alas da esquerda que se organizam em partidos estão excessivamente focadas em disputar uma fatia do poder estatal. A principal disputa para ele reside, no entanto, na criação de espaços de diálogo entre Estado e sociedade civil, plataformas que sejam independentes do governo em exercício.
Tendo em vista o horizonte histórico, Eduardo acredita que devemos atentar para o fato de que o país é muito jovem em termos de construção democrática. Apenas trinta anos separam o atual momento político do período de ditadura militar. Para ele, consolidou-se nesse meio tempo, como modelo democrático, a noção de pacto: a população delega por quatro anos sua representação a um grupo, criando um pacto em torno das propostas de campanha. Não existem, no entanto, mecanismos de controle de forma que a população não tem garantias de que os projetos pelos quais elegeram seus representantes sejam de fato implementados e nem possui instrumentos para questionar as decisões de quem está no poder, salvo em casos de desvio moral. Eduardo acredita que esse modelo hoje se esgotou e que é preciso criar um projeto de participação em torno do qual negociar. “É preciso juntar as organizações da sociedade civil, chamar a população e disputar agenda”.
Miguel Lago, cientista político e fundador da rede de mobilização Meu Rio, usou o conceito de “significante vazio”, do sociólogo argentino Ernesto Laclau, para pensar o termo “participação”. O uso altamente difundido da noção de participação, presente em propagandas de empresas e em peças publicitárias de campanha da maioria dos políticos, evidencia o esvaziamento de sentido do termo. Por isso, sempre ao se debater “participação”, Miguel deixa claro que a “participação” pela qual ele e o Meu Rio trabalham é aquela que inclui cidadãos e grupos nas esferas de tomada de decisão. Os desafios à essa participação no Rio são, para ele, de quatro dimensões diferentes: estrutural, organizacional, processual e discursiva.
O desafio estrutural é fruto do condicionamento imposto pelo ordenamento socioeconômico às dinâmicas de participação no processo de tomada de decisão. O fato de que o trabalho ocupa grande parte do tempo torna difícil que todos participem do conjunto de decisões de uma sociedade. Outra dificuldade está na dimensão organizacional. Toda organização sofre uma tendência de auto-perpetuação de quem ocupa os cargos de poder.
Já no que tange à esfera processual, Miguel cita a questão da mobilidade no Rio como exemplo. A dificuldade de acesso aos dados envolvendo os processos de licitação das linhas de ônibus na capital torna muito difícil a participação cidadã. “Como argumentar que não pagarei R$3,00 no ônibus se eu não tenho acesso aos dados que poderiam esclarecer se o preço é ou não abusivo?” – questiona ele. Confira a campanha online que reivindica a abertura de contratos entre poder público e prestadores de serviços de transporte público.
O que Miguel chamou de “questão discursiva” remete à reflexão do cientista político sobre o conceito de “significante vazio”. Como se inserir num diálogo para reivindicar transparência, com governos que já se dizem transparentes? Os mecanismos de participação e controle, para ele, devem ser negociados, a sociedade civil não pode simplesmente aceitar as condições de participação tal qual desenhadas pelo governo.
– A própria questão da transparência é muito complexa, porque você pode ter uma transparência puramente técnica. Você tem os números, dados, mas você não tem noção da decisão. Eu não estou tão interessado em saber a transparência apenas de quanto foram os gastos com os Jogos Olímpicos. É mais interessante saber, por exemplo, porque a decisão de se colocá-los na Barra, porque talvez se tivessem sido colocados na Zona Norte não teríamos tido necessidade de construir quatro trans. Entra-se aí numa discussão de como é que nós alocamos os recursos. Quais são os argumentos para se colocar os Jogos Olímpicos na Barra? Qual a disputa que houve em torno desse plano?
Átila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional, acredita que estamos vivendo um momento de inflexão importante, em que as ruas devem ser disputadas em termos de valores: o valor da não-violência, o valor da diversidade, entre outros. Átila atenta ainda para o fato de que não estamos começando do zero, tratam-se de 30 anos de construção democrática no qual avançou-se muito. Ele reforça a importância da análise histórica:
– Estamos em um grande laboratório, com experimentos que podem dar certo e podem dar errado, mas resgatar a possibilidade de ampliar as fontes de participação é fundamental e nisso vale pensar em transparência, em mecanismos de participação, nos conselhos, tudo aquilo que já foi inventado e que tem um lugar na história que não é irrelevante.
Aproveitando o gancho de valorização do que já foi construído, José Marcelo Zacchi, diretor executivo da Casa Fluminense, colocou que democracia representativa e democracia direta não são necessariamente antagônicas, tratam-se de polos distantes, entre os quais encontra-se um número grande de modelos possíveis. Tendo como norte a premissa de que quanto mais participação melhor, não se pode simplesmente desmerecer os avanços dos últimos 30 anos. José Marcelo também acredita que vivemos um momento de esgotamento do modelo em voga, que concentrou-se em garantir a decisão das substâncias das políticas e renunciou aos projetos de transformação da própria forma de se fazer política:
– Boa parte das forças que tinham como foco experimentos de participação com orçamento participativo, investimento em conselhos, dinâmicas de consulta, popularização e democratização da própria democracia e etc. acabaram concentrando-se em outras prioridades.
José Marcelo acrescenta que as jornadas de junho marcam o fim de um ciclo político, uma erupção cujo magma não pertencia a ninguém. “Quem vai contar essa história é quem vencer a disputa pela agenda e visões de futuro que está em curso agora” – concluiu.