O Encontro Casa de novembro colocou em debate os altos índices de homicídios que atingem a população jovem, vitimando, principalmente, adolescentes e jovens adultos negros e pardos do sexo masculino. Dados divulgados pelo IPEA revelam que dois em cada três mortos no Brasil são negros e um jovem negro tem 3,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio que um jovem branco, mesmo com índices equivalentes de escolaridade.
No Estado do Rio de Janeiro, apesar da queda geral dos índices de mortalidade violenta na última década, algumas regiões convivem com altas taxas de homicídios. Em Duque de Caxias, por exemplo, esse número alcança 160 mortos a cada 100 mil habitantes jovens, posicionando a cidade como uma das mais violentas para a população jovem do Brasil (confira os dados no Mapa da Violência). O encontro reuniu pesquisadores, jornalistas e membros de organizações de Direitos Humanos para debater qual é a agenda da segurança pública a ser perseguida no Estado, tendo como horizonte a reversão deste cenário e a redução de desigualdades.
O geógrafo Henrique Silveira abriu o debate apontando a importância de relembrarmos a desigualdade estrutural da sociedade brasileira, onde a luta contra o racismo é muito rarefeita e a militarização da polícia transforma a PMERJ em uma “máquina de matar jovens negros” (confira o artigo de Luiz Eduardo Soares sobre a noção de máquina policial e a proposta de desmilitarização). Henrique destacou ainda que a realidade violenta da Baixada Fluminense é fruto de uma história de autoritarismo anterior ao tráfico de drogas, com os chamados grupos de extermínio que apesar de não estamparem as capas de jornal, marcaram a história de alguns municípios da RMRJ. O geógrafo acredita que investimentos estatais e federais na segurança pública devem estar atrelados à participação e à mobilização da população. Ele citou o programa Juventude Viva como uma política a ser aprimorada, principalmente no que tange à produção de informação técnica georreferenciada: “o mapeamento dos locais mais violentos é uma forma de garantir que os recursos sejam implementados nas áreas mais problemáticas, ao invés de serem direcionados aos ‘currais eleitorais’ dos governantes municipais”, completou.
Pesquisadora do CESeC da Universidade Cândido Mendes, a socióloga Sílvia Ramos levou a conversa para a esfera federal. Ela constata que 25 anos após a implantação da Constituição Cidadã, o Brasil ainda convive com índices alarmantes de violência letal. A manutenção das taxas de homicídios, superando a casa dos 20 homicídios por 100.000 habitantes ao ano desde a década de 80 e alcançando 50 mil mortos anuais na última década, mostra que o problema da violência não emplacou até agora na agenda nacional. “O que nós temos feitos de tão errado, enquanto sociedade civil, academia e governo, para que tão pouco tenha sido feito para mudar essa realidade?”, indagou. Para a socióloga, uma possibilidade de evoluir na agenda é reformular a articulação em torno da questão, rompendo com a ideia de que a juventude é apenas vítima de um Estado violento e de uma polícia corrupta e militarizada. Apesar de a polícia brasileira matar em média cinco pessoas por dia, esse número corresponde a 20% do total de homicídios. “É preciso reconhecer que grande parte dos homicídios de jovens são cometidos por outros jovens”. O fato de que as vítimas são também criminosos integra o mecanismo de legitimação dessas mortes pela opinião pública e qualquer tentativa de transformação do quadro deve levar esse fato em consideração.
O pesquisador Ignacio Cano, do Laboratório de Análises sobre a Violência (LAV-UERJ), acredita que a principal reivindicação hoje é a de refocalização das políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro. Hoje, de acordo com o sociólogo, os investimentos em segurança não priorizam os territórios mais violentos. Reforçando os pontos expostos por Henrique, Ignacio lembrou que a Baixada Fluminense, apesar de apresentar os maiores índices de letalidade, ainda não conta com uma Delegacia de Homicídios, nem com UPPs. “A desigualdade socioterritorial é central: as políticas públicas caminham na contramão da focalização que seria necessária”, conclui o pesquisador. Ignacio alerta ainda que, apesar da atual estratégia de segurança do governo estadual já monstrar sinais de esgotamento, o contexto eleitoral de 2014 aumenta a tendência à inércia.
José Marcelo Zacchi, diretor executivo da Casa Fluminense e um dos fundadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, acredita que não houve até o momento convergência para propor uma pauta de reforma institucional no campo da segurança pública. No contexto fluminense, o pesquisador acredita que a política de segurança estadual tem sido orientada não pela diminuição dos homicídios nas áreas mais violentas, mas sim pela recuperação pelo Estado da presença e controle territorial em áreas antes controladas por grupos criminosos armados. “A política de territorialidade é importante, mas ela deve ser pautada por um eixo fundamental, que é o da incidência de violência e violência letal”. Pautar apenas a recuperação de territórios tomados pelo tráfico deixa de fora o debate sobre milícias e grupo de extermínios. Da mesma forma, restringir a discussão às UPPs significa ignorar a complexidade dos desafios envolvidos na qualificação do sistema de Segurança Pública, inclusive a Polícia Civil. Para José Marcelo, assim como para Ignacio Cano, “o esforço mais relevante na área da segurança para a redução dos homicídios no Rio nos últimos anos foi a implantação da Política de Metas, apesar da medida não ser destaque no debate público”.
Raquel Willadino, diretora do Observatório de Favelas, relatou as conclusões que resultaram do Programa de Redução da Violência Letal Contra Jovens e Adolescentes (PRVL), que ela coordena. De 2009 a 2012, o projeto mapeou as políticas públicas voltadas para a prevenção à violência em 16 regiões metropolitanas do país. Foram identificados 160 programas com sensibilidade para a questão etária e ancoragem consistente em espaços populares. Apenas 19 iniciativas, no entanto, tinham como foco a redução da violência letal. Raquel destaca que “o mais assustador é como essas políticas não dialogam especificamente com os grupos mais atingidos: apenas 16% tinham um recorte de gênero e apenas 8% tinham um foco racial”. Para a pesquisadora, os programas, por se pautarem na chave genérica da vulnerabilidade social, falham em atingir o público prioritário. “O Observatório passou a considerar fundamental afirmar o racismo como elemento estruturante da violência letal no país”, afirmou ela.
Um dos desdobramentos das análises do PRVL é a campanha Juventude Marcada para Viver, que tem como estratégia a sensibilização e a desnaturalização da violência, idealizada por jovens da Escola Popular de Comunicação Crítica (ESPOCC). Outra contribuição é o desenvolvimento de uma ferramenta para trabalhar com os gestores locais o monitoramento e avaliação de políticas de prevenção à violência letal. Já são 283 os municípios incluídos no debate do PRVL, que conta com o apoio da Anistia Internacional no Brasil. Átila Roque, diretor executivo da organização, complementou dizendo que em 2014 a Anistia e o Observatório pretendem produzir uma análise e qualificação dos dados de homicídios letais, buscando descobrir quem são esses jovens cuja história foi interrompida. Em torno dos casos serão construídas peças de campanha que também terão o objetivo de desnaturalizar as mortes deste grupo social.
André Rodrigues, pesquisador do ISER, defendeu que parte da tarefa de todos os envolvidos com o campo da segurança pública é pressionar para a construção de uma política consistente, com ampla participação social. Ele lembrou da retomada do Conselho de Segurança Pública como um espaço a ser investido pela sociedade civil. No que tange à desmilitarização, André destacou a importância de evitar a criminalização dos policiais militares, que também são recrutados nas camadas populares e são, em sua maioria, jovens e negros. Rodrigues lembrou que é preciso garantir os direitos dos próprios policiais e possibilitar a “construção de um novo ethos policial”.
O Encontro Casa sobre Violência Contra Juventude Negra foi o quinto debate temático promovido pela Casa Fluminense com o objetivo de incentivar o diálogo sobre temas setoriais da metrópole entre associados e parceiros. Os encontros serão retomados em janeiro próximo.