Encontro Casa debate regularização fundiária e planejamento urbano

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Texto por
Comunicação Casa
Data
23 de agosto de 2013

Nos últimos anos temos assistido à emergência de novas formas de se pensar e agir em relação às favelas no Rio de Janeiro, com ganhos importantes no reconhecimento delas como partes plenas da cidade e na adoção de políticas públicas em sintonia com este princípio, coincidindo com o período de democratização política e afirmação universal de direitos no país e na cidade, a partir dos anos 1980. Esta perspectiva, no entanto, convive ainda com a persistência de abordagens que reproduzem o tratamento histórico a elas, seja na negligência ou discriminação por parte da sociedade e do poder público, seja na adoção de práticas de remoção ou deslocamento forçado dos seus moradores.

Em paralelo a isso, assistimos hoje à afirmação crescente de pressões no sentido da mudança de perfil nas favelas da Zona Sul e da região central da cidade, trazidas pela valorização imobiliária e pela expansão da atividade econômica. Tal como os exemplos de processos similares em outras grandes cidades do mundo, não é possível presumir que tal dinâmica venha a dar-se em benefício dos moradores históricos das áreas, sendo antes claros os riscos de que sem a adoção de estratégias públicas de regulação e suporte ela possa conduzir à ausência deles da maior parte das áreas, com a consumação de processo que a tradução livre do inglês define como “gentrificação”.

Tendo em mente este panorama e a premência da formulação de agendas que permitam contrapor os riscos e aprofundar as conquistas democráticas acumuladas, a Casa Fluminense esteve no início de agosto na Fundação Getúlio Vargas para discutir “Regularização Fundiária e Planejamento Urbano nas Favelas Cariocas”. O debate, organizado em parceria com o LEU (Laboratório de Estudos Urbanos do CPDOC) e a ComCat (Organização Comunidades Catalisadoras) contou com a presença de Itamar Silva, diretor do Ibase, Rafael Gonçalves Soares, pesquisador e professor da Puc-Rio, e Theresa Williamson, diretora executiva da ComCat e co-fundadora da Casa Fluminense.

Theresa Williamson é doutora em planejamento urbano e há três anos ajudou a lançar o portal RioOnWatch. O site, disponível em inglês e português, tem como objetivo dar visibilidade às questões relacionadas às comunidades cariocas, dando voz a líderes comunitários, moradores de favelas e observadores internacionais. O grupo tem acompanhado de perto as transformações urbanas vividas nas favelas. Para Theresa, há fortes indícios de que um processo de gentrificação já esteja em curso na áreas pacificadas da Zona Sul da cidade: “a gentrificação acontece em fases. Primeiramente chegam jovens trabalhadores estrangeiros em busca de aluguéis mais baratos e fascinados pela diversidade das favelas. Esses grupos acabam atraindo a atenção do mercado”.

Itamar Silva, do Ibase, Rafael Soares, da PUC-Rio, e Theresa Williamson, da ComCat

Itamar Silva, do Ibase, Rafael Soares, da PUC-Rio, e Theresa Williamson, da ComCat

A pesquisadora descreveu o contexto da questão urbana no Rio: o aumento da demanda por moradia, a ausência de espaços no centro, a centralização de empregos e serviços e a precarização do transporte público associados à incidência de contas e impostos nas favelas, a partir da inserção das mesmas nas redes formalizadas de troca, estão por trás da valorização fundiária das áreas pacificadas e a consequente expulsão dos moradores históricos dessas regiões. Theresa acrescenta que a ausência de moradia é uma realidade ao redor do mundo e que em média um quarto da população das grandes cidades não tem acesso à habitação. “O problema é reconhecido por muitos Estados que desenvolvem políticas voltadas para grupos desassistidos: aluguel social, programas de habitação social e planejamento de cooperativas habitacionais”, ela completa que tais medidas são implantadas inclusive em áreas centrais das cidades, uma vez que entre urbanistas é consenso afirmar que a diversidade social e cultural agrega valor aos espaços urbanos.

Para Theresa, as favelas devem ser levadas em consideração pelo seu incrível potencial urbanístico. Moradia de baixa renda em áreas centrais, uso de transportes verdes, rica oferta de eventos culturais, proximidade de residências a comércio diversificado: para a corrente do “novo urbanismo” tais elementos são altamente valorizados. Ela defende que o perigo de desagregação das favelas cariocas não está apenas na violação dos Direitos Humanos dos moradores, mas também na enorme perda simbólica e urbanística para a cidade do Rio de Janeiro. “São 115 anos de favelas, mais de 600 experiências espalhadas pela metrópole”, disse a pesquisadora, ressaltando a importância da história embutida no espaço público. Saberes outros que muito podem contribuir para o planejamento de cidades mais integradas.

Como modelo de organização a ser estudado para as favelas cariocas, Theresa apresentou o Community Land Trust (Fundo de Posse Coletiva), iniciativa em vigor em países como EUA e Inglaterra e que prevê o gerenciamento coletivo de um determinado espaço de terra pelos seus moradores, tendo como missão garantir o acesso à moradia. Levar em conta a história, as soluções, as conquistas e as qualidades das favelas através da ativa participação de seus moradores nos processos de urbanização e regularização desses espaços é fator essencial para a composição de políticas públicas. “Queremos que o Rio seja uma cidade global igual a todas as outras ou queremos que seja uma cidade singular?” – perguntou a urbanista.

Rafael Soares Gonçalves, que acaba de lançar o livro “Favelas do Rio de Janeiro – História e Direito”, começou levantando um breve panorama histórico sobre as múltiplas imbricações entre favela e direito ao longo do último século. Existentes desde meados do século XIX, as favelas pairaram durante muitas décadas sobre uma espécie de limbo jurídico: eram toleradas, porém jamais reconhecidas pela lei. Tal ambiguidade abriu margem para brutais políticas de remoção que vigoraram principalmente na década de 60. Ao longo da abertura política de 70, no entanto, esse panorama foi se alterando, de maneira que na constituição de 88, a função social da moraria, prevista de maneira abstrata e subjetiva em todas as constituições desde a de 1934, foi fortalecida. A Constituição de 88 estabeleceu que o poder público tinha a premissa de implantar medidas de combate à concentração especulativa do solo, garantindo a regularização dos meios informais de acesso à moradia. Para Rafael, a partir dos anos 80 a política urbana concentrou-se na urbanização e regularização das favelas cariocas, transformando o Rio em um imenso laboratório de políticas fundiárias. Para saber mais sobre essas experiências, confira o artigo da pesquisadora Rose Compans.

A concentração dos esforços na regularização desestimulou a elaboração de uma política fundiária em escala mais ampla para a cidade. Para Rafael, a regularização acabou se tornando a forma mais simples de livrar o poder público de suas responsabilidades. O pesquisador alerta ainda que a concessão de títulos de propriedade privada pode atrair a atenção de especuladores, uma vez que a informalidade aumenta o risco do investimento em favelas. Cabe refletirmos, portanto, sobre a função social da informalidade e termos em mente que a concessão de títulos de propriedade privada não é a única maneira de garantir direitos. Existem outras ferramentas jurídicas a serem exploradas que permitem pensarmos a regularização fundiária como ferramenta de integração social. Entre as medidas destacadas pelo pesquisador está o fortalecimento da categoria jurídica da posse, que não deve ser compreendida como mera antessala da propriedade, mas como fato passível de ser transformado em direito. Outra sugestão é isentar moradores de áreas de UPP de impostos e taxas urbanas, com o objetivo de facilitar a permanência dos mesmos. Rafael citou também a elaboração de iniciativas de cooperativismo habitacional, como acontece no Uruguai.

Militante de longa data em prol dos direitos dos moradores de favelas, Itamar Silva acredita que vivemos um momento chave. Nunca se pesquisou e se falou tanto sobre favela. Os desafios, porém, ainda são grandes. Os dados levantados sobre as favelas variam muito de instituição para instituição e assistimos a uma descontinuidade crônica em termos de projetos de urbanização das comunidades. Ele acredita que é necessário assegurar a manutenção das favelas como espaços de moradia popular. O diretor do Ibase, no entanto, não acha que a regularização fundiária deva ser uma reivindicação, insistindo na necessidade de explorarmos o direito de posse. Assim como Theresa e Rafael, Itamar defende que a participação dos moradores e a incorporação do aprendizado coletivo construído nas comunidades são características centrais para garantir o sucesso das iniciativas de urbanização das favelas cariocas.

E a conversa não parou por aí. O sociólogo Luiz Antonio Machado da Silva, que acompanhou a conversa, acredita que a regularização fundiária é um tiro no pé, uma vez que abriria portas para a gentrificação. “A formalização do informal pode alterar de maneira drástica a relação de acesso à cidade”, disse o pesquisador. Outras formas de concessão deveriam ser exploradas. Para o sociólogo, é necessário estarmos atentos aos mecanismos de idealização da favela. A favela é um universo heterogêneo, onde há disputa e conflito, de forma que não podemos falar sobre os interesses das favelas, mas sim sobre os interesses dominantes nas favelas, marcada também pela lógica empreendedora.

Rose Compans, pesquisadora o IPPUR e funcionária da Prefeitura, também colocou um ponto importante: não existe favela, mas sim múltiplas favelas com diferentes histórias, relações de poder, relações econômicas e demandas. A gentrificação, por exemplo, é um fenômeno restrito às favelas da Zona Sul. Ela é a favor de uma regularização que garanta a função social da propriedade, mas vê riscos em apostarmos na legislação do direito de posse uma vez que envolve a tutela do Estado. Em casos de despejo forçado, por exemplo, o poder público se responsabilizaria por pagar o valor do imóvel construído, mas não do terreno.

José Marcelo Zacchi, diretor executivo da Casa Fluminense, acredita que precisamos partir do pressuposto de que a diversidade social e cultural que caracteriza a capital fluminense é um ativo, que deve ser mantido não só em benefício dos moradores de comunidades, mas de todos os moradores do Rio de Janeiro. A não-estratificação deve ser uma luta e devemos pensar políticas públicas que permitam a manutenção dessa diversidade, como por exemplo, a regulamentação diferenciada através das ZEIS.

Também esteve presente no debate a pesquisadora Julieta Nunes, do IPPUR. Julieta defende que o fracasso da política fundiária advém da dificuldade de adequar a legislação, feita para a cidade formal às lógicas da favela. Ela acredita que apesar dos problemas da regularização fundiária, a propriedade privada melhoraria a situação dos moradores de comunidades e que é natural que eles estejam dispostos a vender suas casas em vistas de maior estabilidade financeira. “Vivemos em uma lógica capitalista, seria difícil regular algo que não pode ser resolvido” – conclui a pesquisadora. Encerrando o debate, Itamar Silva discordou. O diretor do Ibase disse que durante muitos anos defendeu o direito dos moradores de favelas à propriedade privada, mas que hoje prefere ser tutelado pelo Estado frente ao risco de assistir à desintegração das favelas cariocas.

Leia o texto-base que norteou a conversa e confira uma síntese das propostas levantadas no debate

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