* Por Danielle Francisco
Medir o papel da Cultura e seus impactos objetivos para uma agenda de desenvolvimento não é tarefa fácil, mas exercício de emergência: não há fazer cultural, em pleno ano 18 do século 21, que não se confunda com a própria demarcação da vida diária – e da possibilidade de sua reinvenção. Portanto, pensar Cultura a partir desse viés é convocar a escrita coletiva de uma pauta política que traga os processos artísticos e culturais para a centralidade do debate econômico. Podemos não gostar – muito menos aceitar – a orientação conceitual da Economia da Cultura sempre associada ao mainstream e às múltiplas distorções feitas por essa disputa, mas para os realizadores culturais de base – que é onde me incluo e de onde falo, tendo a Baixada Fluminense como ponto de partida – a cadeia produtiva, as redes de colaboração e os arranjos comunitários forjados na Cultura são práticas reais e evidentes de geração de trabalho e renda.
Criamos negócios, processos e produtos de qualidade conferindo-lhes distribuição em escala – quase sempre gratuita – de obras materiais e imateriais como filmes, músicas, shows, zines, revistas, livros, circuitos, mostras e festivais literários, cineclubistas, teatrais, musicais, exposições, espetáculos das mais variadas linguagens e tamanhos. Enfim, um manancial de manifestações que agregamos valor cognitivo, claro, mas sobretudo, monetário.
Evidentemente que a riqueza capaz de ser gerada pela Cultura está muito além daquilo que possa ser quantificável, por isso reduzi-la a um número ou gráfico frio não nos interessa. Mas deve nos interessar uma gestão da informação que qualifique a gestão cultural, seja na esfera pública, privada, nos fundos sociais, seja para os gestores da ponta que somos nós. Um cuidado na construção de dados que comecem, por exemplo, por diagnósticos e mapeamentos participativos realizados em parceria – eu digo juntão mesmo, coladão – com quem produz e vive nos territórios, pode colaborar substancialmente para endereçar, de fato, a questão.
Para quais políticas ou estratégias de desenvolvimento serviram os inúmeros mapeamentos culturais feitos pelo poder público, pela academia, pela iniciativa privada nos últimos anos na metrópole do Rio? Mesmo com todos os esforços empenhados em sistematizar e qualificar pesquisas e indicadores nesse campo – como a produção do Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2007-2010 realizado pelo IBGE – ainda é pouco o que sabemos sobre para quem produzimos, o que produzimos e como produzimos desenvolvimento para nossas vidas, cidades, estados e país a partir de nossas competências criativas.
Encaro essa tarefa como fator-chave que precisa levar em conta nossas tecnologias de baixo para cima, plurais, inclusivas e afirmativas, e que é um ponto de inflexão que nos demanda a missão de medir e expressar dados que comuniquem a vitalidade da nossa produção cultural – que anda fervendo, ou melhor, incendiando – apesar dos tempos de golpe.
Diante desse novo Brasil, descortinado por uma voraz e sangrenta violação de direitos que atenta, sobretudo, contra a vida dos pobres, pretas e pretos, faveladas, favelados e periféricos; torna-se vital a defesa com unhas e dentes do que restou até aqui. E o que restou até aqui é muito pouco ou quase nada frente a tamanha contribuição popular que forja essa geografia ‘fora de lugar’ das favelas, da Baixada Fluminense, dos guetos, das encruzilhadas que não param de produzir, nem um só dia, os cachorro-quentes do Russo, os grupos teatrais, os bailes funk do Parque do Ferreira, as rodas de rima, os cortes de cabelo na régua, as bandas das igrejas evangélicas, as confecções de fundo de quintal ou de meia porta, os pagodes nas quadras comunitárias, os eventos festivos dos povos de santo. Ou seja, uma infinidade de setores criativos e empreendedores que sobrevivem sem qualquer incremento, fazendo girar as economias locais e protagonizando modos de vida inovadores.
Inovação aqui é sem mi-mi-mi: porque a gente não conhece, muito menos reconhece, a inovação que não seja cidadã, que não seja permeável aos diferentes estratos sociais e que não dê ênfase à política pública. Vocês leitores e leitoras irão me desculpar, mas discutir, fomentar e promover festival de entretenimento, inovação e criatividade pagando 100 reais pelo ingresso inteiro (valor mínimo), láááááááá na Cidade das Artes, láááááááá na Barra da Tijuca sob o slogan It’s All Connected, e usando dinheiro público para tal, é no mínimo, uma piada de mal gosto de gestores culturais sem-noção – e claro, pertencentes a um way of life que vai totalmente na contramão do que digo aqui.
Por isso é urgente reposicionar as pesquisas e produzir indicadores sobre essa Economia da Cultura que possa embasar a defesa de uma nova agenda de desenvolvimento e garantia de direitos. Nós não queremos disputar só narrativa, isso a gente nem disputa, afinal não há imaginário mais rico, sensível e vibrante do que o produzido pelos pobres desse país. Salve Dona Ivone Lara, à bênção Raquel Trindade, evoé Nelson Pereira! O que está em jogo, no seio dos golpes diários, é a preservação da vida e da dignidade dos fazedores culturais que brutalmente são assassinados, por exemplo, em Maricá porque desenvolvem um trabalho político-cultural de base com a juventude local através do Hip Hop.
Entender e apurar quantitativamente toda transformação que estamos, ao longo do tempo, promovendo e fermentando – sobretudo sem a visibilidade dos grandes holofotes – pode ser a chave de uma revolução sociocriativa, econômica e urbana tal qual atravessou Medellín, na Colômbia, nas últimas décadas, mesmo com várias dificuldades. Uma agenda conectada com diferentes bases e atores comunitários, empresas, universidades, entidades do terceiro setor e poder público apontada para o renascimento de uma cidade que na década de 90 recebeu da ONU o título de cidade mais violenta do mundo – quintal de Pablo Escobar (competindo aí com Belford Roxo que amargou a mesma posição na década anterior – quintal dos grupos de extermínio) e que hoje se posiciona no mundo através de uma inteligência de desenvolvimento urbano que elege a Cultura e a Inovação como meio para + oportunidades e – desigualdades. Exercício de emergência purinho.
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* Danielle Francisco é jornalista, produtora cultural e mestre em Educação, Comunicação e Cultura em Periferias Urbanas pela UERJ. É fundadora e diretora executiva da Terreiro de Ideias: Arte, Comunicação, Cultura, co-fundadora do Gomeia Galpão Criativo e conselheira da Casa Fluminense.