Segurança pública: se é possível para uns, por que não para todos? 

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Texto por
Comunicação Casa
Data
28 de março de 2025

Por Carlos Nhanga

Foram necessários 70 tiros disparados por policiais, dentro de uma casa cheia de crianças, para que fosse tomada alguma medida para frear a letalidade policial no Rio de Janeiro. Infelizmente, João Pedro não pôde ver isso acontecer. 

Era 19 de maio de 2020, ainda na pandemia da covid-19, e o menino João Pedro brincava dentro de casa com outras crianças. Por conta das recomendações para conter o avanço do vírus na época, ficar em casa era a melhor opção para se manter seguro e vivo. Mas isso não foi suficiente para um menino negro de apenas 14 anos. João foi morto a tiros durante uma operação das polícias Civil e Federal no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Cheio de sonhos e objetivos, teve sua vida violentamente retirada por agentes do Estado que deveriam protegê-lo. O caso João Pedro escancara a face mais cruel da violência policial que, infelizmente, nos acostumamos a conviver todos os dias. 

Naquela época, já haviam ajuizado a ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, para restringir operações policiais nas comunidades no contexto de calamidade da pandemia. Mas foi depois da morte de João que a ação foi referendada no STF, com o ministro Edson Fachin citando o caso. “Muito embora os atos narrados devam ser investigados cabalmente, nada justifica que uma criança de 14 anos de idade seja alvejada mais de 70 vezes”. Depois de 70 tiros disparados dentro de uma casa onde havia somente crianças, a necessidade de exigir o controle da atividade policial para preservar vidas entrou no centro do debate. “O fato é indicativo, por si só, de que, mantido o atual quadro normativo, nada será feito para diminuir a letalidade policial, um estado de coisas que em nada respeita a Constituição”, completou Fachin.

O caso João Pedro se tornou simbólico para mim não só por ser um profissional que trabalha com segurança pública. Sendo um homem negro nascido e criado na Baixada Fluminense, eu aprendi muito antes de me tornar um profissional da área que a letalidade policial atingia, frequentemente, corpos como o meu. Foi muito antes de entrar para o Instituto Fogo Cruzado e passar a monitorar, diariamente, dados sobre violência armada, que eu já sabia quem era o principal alvo dessa violência.

Aliar a vivência ao trabalho me fez aprender e ampliar o olhar sobre questões da segurança pública que eu ainda não conhecia e ter condições de pensar, discutir e construir novas possibilidades que preservem nossas vidas. É amplamente divulgado, há décadas, que a segurança pública é um problema no Rio de Janeiro. Mas pouco se discute como esse problema, e as soluções para ele, acontecem de forma segregada. 

Uma operação policial na zona norte do Rio pode afetar, direta e indiretamente, a vida de milhares de pessoas. Risco de balas perdidas, escolas, postos de saúde fechados, vias expressas, trens e metrôs parados. Por que é possível afetar a vida de tanta gente em determinado lugar sem que isso cause nenhuma responsabilização? A diferença entre a quantidade de tiroteios e vítimas nas zonas norte e sul da capital, por exemplo, mostra como a política de segurança é pensada para cada lugar, a partir de cada população que habita ou frequenta ali. Afinal, uma criança do Leblon teria o mesmo fim de João Pedro?

Ainda que não seja um desafio fácil, é possível  – e extremamente necessário –  construir uma política de segurança que garanta a vida e o bem viver. Uma política de segurança que, de fato, assegure que nossas crianças e adolescentes possam brincar em casa ou na rua. Se é possível para uns, por que não para todos?

*Carlos Nhanga é cria e peregrino da Baixada Fluminense com passagens por Belford Roxo, Caxias e Nova Iguaçu. Jornalista especializado em dados e cobertura de violência armada. Atualmente, é coordenador regional do Instituto Fogo Cruzado no Rio de Janeiro.

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