De Santa Cruz a Tanguá, passando por territórios marcados pela ausência estatal, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro vive urgências e violências que, ao não serem registradas pelo poder público, acabam apagadas das estatísticas e das narrativas oficiais. Na operação policial nos Complexos do Alemão e Penha, a mais letal da história do Brasil, foram os moradores que entraram nas matas para contar os corpos, registrar desaparecimentos e produzir um diagnóstico do impacto da chacina.
O caso não é isolado. Nas enchentes que atingiram o Rio em 2024, enquanto o governador Cláudio Castro estava na Disney, foram as famílias vítimas do racismo ambiental que começaram o trabalho de levantamento dos desaparecidos, identificação dos pontos de risco e de acolhimento. Em um país onde quilombos somem dos registros, aldeias não entram nos mapas, moradores de favelas são subcontados nos censos e a população trans permanece invisível nas bases governamentais, a falta de dados não é apenas um problema técnico, é um mecanismo que define quem desaparece do orçamento, dos planos de governo e fica de fora das políticas públicas.
Indo contra essa maré de apagamento, organizações como a Casa Fluminense, o data_labe, o Centro Brasileiro de Justiça Climática, o Fogo Cruzado, o Instituto Decodifica, entre outras organizações, têm produzido seus próprios diagnósticos, a partir da Geração Cidadã de Dados (GCD). “A GCD se propõe a trazer para o centro do debate as populações marginalizadas e vulnerabilizadas como protagonistas da sua realidade, do seu conhecimento e saber, e com isso poder influenciar as políticas públicas sobre a vida delas”, situa Mariana de Paula diretora do Instituto Decodifica.
Os dados contam histórias
A Casa Fluminense, tem usado a Geração Cidadã de Dados como ferramentas para produzir monitoramentos e diagnósticos sobre a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O Cobradô, plataforma de monitoramento da organização, surge como uma ferramenta de indicadores essenciais para se entender a atual realidade da Metrópole do Rio, como o peso da tarifa de transporte, cobertura da atenção básica, impactos climáticos, sobrecarga do trabalho do cuidado, entre outros indicadores.


Um dos destaques apontados pelo Cobradô é a ausência de dados sobre a população quilombola. O Brasil realiza o Censo desde 1872, mas apenas em 2022 a população quilombola foi oficialmente contabilizada no conjunto de dados estatísticos do poder público. Ou seja, são mais de 150 anos de ausência estatística que resultaram, também, em 150 anos de ausência de políticas públicas devidamente estruturadas.

Segundo Luize Sampaio, coordenadora de informação da organização, além dos quilombos, outros dados passaram a ser questionados durante o levantamento que realizaram para o Cobradô. “Também ficamos nos perguntando qual é o número exato das aldeias que temos na Metrópole do Rio, já que o censo não mapeou isso de forma adensada. Se essas populações não são mapeadas e contabilizadas, como se constrói políticas públicas direcionadas para elas?“, provoca Sampaio.
Outras organizações sociais também utilizam da GCD para disputar a narrativa que é contada sobre seus territórios e comunidades. O Cocôzap, projeto do data_labe, organização que atua no Complexo da Maré, transforma o WhatsApp em uma ferramenta de denúncia e mapeamento de problemas de saneamento básico do território. É a população sistematizando e mapeando sua própria realidade diante da ausência do Estado, produzindo dados sob risco, urgência e escassez de recursos.
Segundo Clara Sacco, Diretora Executiva e co-fundadora do data_labe, os levantamentos realizados a partir da Geração Cidadã de Dados são essenciais para o enfrentamento das desigualdades, mas para ela, essa é uma tarefa que é atravessada por muitos desafios, que vão desde falta de financiamento até a luta pela legitimidade de suas metodologias.
“A gente tem um desafio de fomento, de acesso a subsídios para produzir esses dados, além do desafio de credibilidade. Por mais que seja um trabalho estatisticamente e metodologicamente bem definido, não necessariamente esses dados são reconhecidos pelo poder público, pelas instituições ou pela mídia”, compartilha a Diretora Executiva do data_labe.

Essas iniciativas mostram que produzir dados no Brasil é uma disputa de direitos, narrativa e memória. A partir dos dados que são ou não produzidos pelo poder público é definido quem existe ou deixa de existir no contexto político do Brasil, e a Geração Cidadã de Dados tem contornado isso para que a população periférica, favelas e comunidades marginalizadas possam contar sua própria história.
GCD como movimento nacional
Em um ano marcado pela 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 30) e com as eleições estaduais de 2026 se aproximando, se tornou essencial para as organizações construir espaço colaborativo de diálogo sobre como a GCD pode influenciar tomadas de decisões importantes para o futuro dos territórios.
“Neste ano a temática da GCD ganhou muita força, isso porque essa COP foi realizada no Sul Global, que é a região mais impactada com a crise climática, mas também onde a população mais precisa se reinventar de forma autônoma na busca por soluções. Isso é um indício de que nestes territórios se criam mais tecnologias sociais, tanto aquelas voltadas para o enfrentamento ao racismo ambiental quanto às tecnologias e replicações de Geração Cidadã de Dados”, afirma Sampaio.
O II Seminário Geração Cidadã de Dados, realizado no Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB) pela Casa Fluminense, data_labe, Fogo Cruzado e Instituto Decodifica, reuniu organizações, coletivos, lideranças e integrantes da Rede GCD em um espaço de fortalecimento das ações em torno da produção de dados de forma cidadã. O encontro aproximou quem já atua com Geração Cidadã de Dados e quem busca desenvolver ou replicar tecnologias sociais que devolvem aos territórios a possibilidade de registrar, interpretar e transformar suas realidades através dos dados.

Embora cada organização trabalhe com metodologias nascidas de urgências específicas, todas compartilham do mesmo objetivo de produzir dados que devolvam respostas aos territórios e comunidades. “A Geração Cidadã de Dados realmente mostra para os territórios e para as lideranças que a gente tem total capacidade de ter uma influência nas políticas públicas, de fazer incidência, mobilização em torno daquilo que é importante para gente e para os nossos territórios”, compartilha a diretora do Instituto Decodifica
Para Isabelly Damasceno, ex-aluna do Curso de Políticas Públicas da Casa Fluminense, que participicou do Seminário, acompanhar as oficinas trouxe aprendizados e abriu caminhos para novos legados. “Muita gente não conhecia a metodologia, e quanto mais pessoas conhecerem a GCD, mais vamos produzir dados efetivos e de qualidade. Isso é um legado para o futuro”, compartilha Isabelly.

Em um momento em que a crise climática, a violência de Estado e a desigualdade urbana avançam mais rápido do que a capacidade institucional de responder a elas, iniciativas como a Rede GCD apontam caminhos possíveis. Ao produzir dados, produzir memória e produzir respostas, essas organizações mostram que disputar o que é contado através dos dados, significa também disputar quem tem direito a políticas públicas.
A Casa Fluminense tem uma trajetória consistente na produção de dados e na luta pela redução das desigualdades na RMRJ, e neste ano de COP 30 a organizações foi a Conferência com suas metodologias, narrativas, dados e tecnologias, para pautar a luta por justiça climática, a partir da justiça racial, de gênero e econômica.
Entre as agendas em Belém, o “Encontro GCD Pré-COP: construindo caminhos entre dados, territórios e justiça climática” reuniu organizações, lideranças e pesquisadores do país inteiro para apresentar metodologias de monitoramento e debater como a produção cidadã de dados pode responder às urgências climáticas. “A gente decidiu realizar esse evento para reunir pesquisadores que estão gerando dados dentro de periferias e favelas de todos os territórios do país, com o objetivo de apresentar a GCD e ampliar o mapeamento que estamos fazendo de organizações que atuam dessa forma”, compartilha a coordenadora de informação da Casa Fluminense.
Ao lado do Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC) e do Observatório das Baixadas, a organização também realizou o lançamento do Painel Climático de Belém, a primeira replicação da metodologia criada pela Casa Fluminense para o Painel Climático da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

“O Painel traz informações sobre infraestrutura, esgoto, água, área verde, vulnerabilidade a inundações e altas temperaturas. Sempre cruzando os dados para revelar quem está mais exposto e também quem está mais protegido”, explica Taynara Gomes, coordenadora de pesquisa e dados do CBJC.
A Casa Fluminense também realizou o lançamento do De Olho no Transporte 5 (DOT 5), publicação que monitora a mobilidade urbana da Região Metropolitana do Rio por meio de dados produzidos diretamente por quem vive o transporte público todos os dias.
A participação da Geração Cidadã de Dados na COP 30 revela a consolidação de um movimento nacional de produtores de dados que desafiam a limitação das informações públicas. Do transporte à infraestrutura urbana, das inundações ao calor extremo, das violências do Estado à cultura, esses grupos mostram que a GCD é uma tecnologia social capaz de abrir caminhos onde as políticas públicas ainda não chegam. “É interessante porque a GCD é uma tecnologia social cuja metodologia se adapta e se transforma a partir dos pesquisadores e dos contextos territoriais. Dentro da própria Rede GCD já existe uma grande diversidade de formatos e modos de fazer”, destaca Sampaio.
Ao produzir informação desde os territórios, e para os territórios,, os coletivos e organizações que atuam através da Geração Cidadã de Dados apontam que o futuro das cidades depende de quem tem vivido, narrado e, a partir da GCD, registrado suas urgências com estratégia e respostas às desigualdades.


