Visibilidade trans: a luta por representação política, dados e direitos

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Texto por
Carín Nuru
Data
31 de março de 2025

Dentro de um cenário marcado por violência, invisibilização e marginalização, cada conquista política representa um passo importante na luta por direitos da comunidade trans. ​Nos últimos anos, o Brasil tem tido um avanço significativo na representatividade de vereanças trans. Nas eleições de 2024, 624 candidaturas de pessoas trans foram registradas nacionalmente, resultando na eleição ou reeleição de pelo menos 28 pessoas para cargos de vereanças, segundo informações publicadas pela Associação Nacional de Travestis e Transsexuais, a Antra.

Desde 2014, a Associação realiza um trabalho significativo de monitoramento das candidaturas transgêneras no Brasil.  Além disso, em 2016, a Antra começou uma incidência direta com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para que fossem registrados e coletados os dados de pessoas trans nas eleições. Foi apenas em 2024 que o TSE passou a registrar oficialmente o número de candidaturas trans no país. A presidenta da Antra, Bruna Benevides, compartilhou sobre o trabalho que a organização tem realizado em torno da produção de dados relevantes sobre a população trans e travesti.

“Buscamos orientar o Estado sobre como esses dados devem ser coletados e, para isso, mantemos diálogo com diversas instituições, incluindo o Tribunal Superior Eleitoral, cobrando transparência e o devido reconhecimento das nossas representações. A omissão estatal deve ser combatida, e é fundamental que o governo assuma seu compromisso com os direitos, a dignidade, a proteção e a vida da nossa comunidade, o que passa, necessariamente, pela produção e sistematização dessas informações”, compartilha Bruna.

Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), 449 candidaturas disputaram os cargos de vereanças, segundo dados do TSE. Entre os municípios da região, apenas Paracambi e São Gonçalo não registraram nenhuma candidatura trans. Apesar disso, Benny Briolly (PSOL), vereadora trans negra, foi eleita na RMRJ, cumprindo seu segundo mandato em Niterói. Em todo o estado do Rio, Kará Marcia (PDT), de Natividade, também conquistou a reeleição.

A produtora e coordenadora do Fórum Estadual de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro (Fórum TT RJ), Wescla Vasconcelos, é ex-assessora parlamentar e em 2024 realizou o 1º Encontro de Parlamentares Trans no Brasil, que aconteceu no Rio de Janeiro. “Protesto e mobilização acontecem e são muito importantes, mas também precisamos ocupar outros lugares. O Encontro de Parlamentares Trans se propõe a isso”, explicou Wescla.

Eventos como o encontro reforçam a relevância de candidaturas trans, celebrando e fortalecendo os mandatos conquistados. Durante a programação, foi elaborado o Manifesto do 1º Encontro Brasileiro de Parlamentares Trans, que enfatiza a importância da representatividade política, cada vez mais consolidada como uma conquista para a comunidade trans.

“Tem toda uma proposta da gente resgatar a autoestima de ser brasileira. Porque estamos no país que mais mata pessoas trans, mas precisamos também ocupar nossos espaços. Também somos brasileiras, os espaços políticos também nos pertencem”, afirmou Wescla.

O avanço da representatividade trans na política tem aumentado a cada ciclo eleitoral. Em 2020, também ano de eleições municipais, a Antra registrou 294 candidaturas em todo o Brasil — uma diferença de 330 candidaturas em relação a 2024. Embora esse aumento seja significativo, ele ainda não reflete a total diversidade da comunidade. Pessoas transmasculinas negras, por exemplo, continuam sub-representadas nos espaços de decisão, o que impacta diretamente a elaboração de políticas públicas.

Intersecção da violência

Além da representatividade política, a falta de dados públicos é um dos principais desafios enfrentados por pessoas trans e travestis. A maior parte das informações sobre essa população é gerada pela própria comunidade, por meio de lideranças, grupos e organizações que se dedicam à produção cidadã de dados. A Antra, por exemplo, faz parte desse movimento, assumindo a responsabilidade por uma tarefa que deveria ser do governo: monitorar integralmente a realidade da população.

“A Associação tem se dedicado à produção de dados em diversas áreas devido à omissão do Estado, que, ao não gerar essas informações, nega o reconhecimento legal das nossas existências e dificulta o acesso a direitos e à cidadania da comunidade trans e travesti. Por isso, o trabalho que realizamos é essencial, pois são as organizações da sociedade civil que vêm suprindo essa lacuna, não apenas para dar visibilidade, mas também para garantir segurança e proteção a parlamentares e demais representações políticas em um cenário de violência política de gênero”, acrescenta a presidenta da Antra.

O apagamento de dados, a representação política e as barreiras no acesso a políticas públicas se agravam quando analisados sob a perspectiva racial. Isso dificulta a criação de políticas que atendam às demandas interseccionais da comunidade. O estudante de psicologia e integrante da Liga Transmasculina João W. Neri, Francisco Espírito Santo, desabafa sobre as intersecções da violência que impactam a vida de pessoas como ele.

“Não é só a transfobia, a gente carrega o racismo, o feminicídio, a misoginia, tudo isso está atravessando os corpos trans negros”, ressalta Francisco.

A ausência de dados sobre pessoas trans, reflete a negligência histórica do Estado em relação a essa comunidade, mas também reforça barreiras no acesso a direitos básicos, como saúde, educação e empregabilidade. Segundo o Mapa da Desigualdade da Casa Fluminense, 7 municípios da RMRJ possuem menos da metade da sua população coberta pela atenção básica – e não há dados específicos sobre quantas dessas pessoas são trans.

“Na saúde nós temos protocolos, mas eles não são implementados. A cidade do Rio tem uma cartilha de hormonização na saúde, mas não tem obrigatoriedade na capacitação dos profissionais para atender na unidade primária”, desabafa Francisco.

Conforme o levantamento realizado no Projeto Garupa, uma iniciativa da Prefeitura do Rio de Janeiro, das 526 pessoas consultadas sobre o programa de hormonização assistida pelo SUS, 43%  responderam que conhecem o programa, mas nunca participaram; e 29% tomam hormônios por conta própria.

A ausência de políticas efetivas voltadas para pessoas trans evidencia a necessidade de articulação entre diferentes frentes de luta. Em resposta a essa urgência, a Liga Transmasculina, liderada por três homens trans negros, realizou em setembro de 2024 o Seminário “Saúde mental e reprodutiva dos homens trans: olhares racializados, inclusivos e diversos”.

Como projetar mudanças?

Enfrentar a invisibilidade política, é uma demanda que a comunidade trans tem se organizado para contornar. Seja no parlamento, com a representação de vereanças trans, ou por meio de eventos e mobilizações realizadas pela sociedade civil, o objetivo é garantir que as demandas da população trans sejam consideradas e, assim, projetar políticas públicas mais inclusivas.

No dia 27 de janeiro, aconteceu o 1º Fórum de Transmasculinidades Negras do Brasil, na Câmara dos Deputados em Brasília. Organizado pela Liga Transmasculina João W. Neri, o evento reuniu representantes de organizações sociais, ativistas, parlamentares e a comunidade trans como um todo, para discutir justiça racial, saúde, esporte e cultura, a partir da perspectiva de homens trans e pessoas transmasculinas negras.

Durante o evento, o mestrando em História, Política e Bens Culturais e integrante da Liga, Giovanni Oliveira, pontuou a importância de disputar espaços como a câmara dos deputados para ter a pauta trans reconhecida. “A gente existe e resiste, construindo cotidianamente a busca por um futuro possível e esse futuro somente será possível considerando a nossa da comunidade e a sua diversidade. Porque não existe uma forma só de ser trans, de ser masculino, de ser homem, e essa é uma das coisas que a gente quer disputar”, explicou Oliveira durante o encontro.

Eventos como o Fórum de Transmasculinidades Negras e o Encontro de Parlamentares Trans, mostram que a mobilização da sociedade civil também é essencial para preencher essas lacunas e pressionar o Estado por mudanças estruturais. Esse movimento coletivo tem sido um dos principais motores na formulação de propostas e na reivindicação de direitos, fortalecendo a participação trans nas decisões que impactam vidas.

Como parte desse movimento, a Liga Transmasculina João W. Neri está elaborando a Agenda de Políticas Públicas para Pessoas Trans – Rio 2030, um documento que reunirá diretrizes e propostas para a formulação de políticas públicas voltadas à população trans e travesti da metrópole do Rio de Janeiro. O objetivo é consolidar políticas que dialoguem com diferentes demandas da comunidade e pressionem o Estado por mudanças que garantam dignidade e equidade para essa população.

“O primeiro objetivo é cobrar os poderes públicos, apresentando todos os eixos da agenda. Vamos compartilhar a publicação com o núcleo parlamentar, para mostrar que pessoas trans também entendem de políticas públicas, mas também queremos prospectar informação para as pessoas trans, queremos formar novas lideranças, usar a Agenda como uma base de letramento”, explicou Francisco, um dos representantes da Agenda Trans.

“O primeiro objetivo é cobrar os poderes públicos, apresentando todos os eixos da agenda. Vamos compartilhar a publicação com o núcleo parlamentar, para mostrar que pessoas trans também entendem de políticas públicas, mas também queremos prospectar informação para as pessoas trans, queremos formar novas lideranças, usar a Agenda como uma base de letramento”, explicou Francisco, um dos representantes da Agenda Trans.

Agenda Rio 2030

Para fortalecer a formulação de políticas públicas intersetoriais e interseccionais para a população da Metrópole do Rio de Janeiro, a Casa Fluminense desenvolveu a Agenda Rio 2030, que apresenta dez propostas de políticas prioritárias. Entre as medidas que podem atender às demandas da população trans, estão a implementação de Mais Cobertura da Atenção Básica e a criação do Instituto de Planejamento e Pesquisa.

A coordenadora de informação da Casa Fluminense, Luize Sampaio, destaca que a construção de políticas públicas efetivas está alinhada com a produção de dados qualificados. “Sem um planejamento integrado e dados precisos, seguimos reproduzindo um modelo de gestão que não responde às necessidades da população. A criação de um Instituto de Planejamento e Pesquisa é fundamental para apoiar a atuação de parlamentares e lideranças trans, garantindo que as políticas alcancem quem mais precisa”, afirma Luize.

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