Entre rodas e tambores, Isabel de Oyá e Afrodite bxd dão ritmo a cultura popular na Baixada

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Texto por
Luize Sampaio
Data
24 de agosto de 2021

Dos tambores de pele aos tambores digitais, das rodas de rima às rodas do candomblé, a cultura popular da Baixada Fluminense é ancestral. Isso pode ser percebido em uma conversa com mestras consagradas como a Mãe Isabel de Oyá, de 71 anos,  e também com jovens mestres de cerimônias (mc’s), como a rapper Afrodite bxd, de 20 anos. Cada uma à sua maneira, essas duas mulheres negras encontraram na arte uma forma de contar a sua própria história e também a história daqueles que vieram antes.

Isabel de Oyá e Afrodite bxd. Arte: Taynara Cabral

Nascida e criada entre a Zona Oeste do Rio e Belford Roxo, a jovem Ligia Benvinda se tornou a Afrodite bxd há 5 anos. A paixão pelo movimento do Hip Hop começou nas rodas de rima que conheceu por influência de amigos. Aos 13 anos, ela pulava o muro de casa e ia escondida para as batalhas de rima. Sua mãe, Dona Luciana, evangélica missionária, só começou a aprovar a escolha da filha quando percebeu que o rap ajudou a Afrodite a se afastar das drogas e ambientes ruins. Viu a filha voltar a se interessar pelos estudos e foi na literatura que a Afrodite passou a ter um fascínio pelo Egito, sua história e personagens, como a Cleópatra. Uma das suas principais músicas se chama “O Egito é Preto”  e dá o tom do que está por vir no seu primeiro álbum, que vai ser lançado no dia 16 de setembro, intitulado “O suicídio da Cleopatra”. 

Art digital por @henriffox para o single Joia da Afrodite Bxd

“Queria que esse trabalho fosse algo muito a minha cara, mas que ao mesmo tempo abordasse um tema importante. Passei meses estudando sobre o Egito e sua população. Tem uma contradição de quando as pessoas pensam na África e associam com miséria e fome, mas quando falam do Egito imaginam ouro e riqueza como se lá não fosse um país africano. Quero falar dessa dualidade e fazer com que as pessoas pesquisem sobre o seu passado. Acredito que tenha muita gente que não saiba que o Egito é preto e que a Cleópatra não tem aquela cara hollywoodiana”, explicou Afrodite bxd. 

O marco dos 13 anos também foi importante na vida da Maria Isabel Vitorino, conhecida hoje como Mãe Isabel de Oya. Com a morte do seu pai, a mineira deixou o estado com a família e veio morar em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. Acostumada a trabalhar na plantação de café, aqui ainda com 13 anos, se tornou empregada doméstica, um serviço que a acompanhou durante boa parte da sua vida. Para ajudar a família precisou sacrificar seus estudos, só conseguiu estudar até o quarto ano. Hoje, Dona Isabel divide seu dia entre a rotina do seu terreiro e as atividades da Associação Cultural e Recreativa Afoxé Raízes Africanas,  fundada e presidida por ela há 18 anos. Uma das principais articuladoras culturais da sua região, Mãe Isabel fundou o primeiro e único Afoxé de Belford Roxo.

O Afoxé é uma manifestação popular muito comum durante o carnaval e também é conhecido como o candomblé das ruas. É um cortejo tocado pelos terreiros com muita música, um ponto de encontro entre a população das religiões de matrizes africanas. Um dos seus grupos mais conhecidos do país é o Filhos de Gandhy de Salvador. Uma das herança desse grupo, que já existe há mais de 70 anos, é que não é permitido a participação das mulheres no desfile. Foi assistindo esse cortejo que Mãe Isabel teve vontade de fundar seu próprio Afoxé, ela recorreu às memórias da infância para criar suas tradições.

“Vendo todo aquele colorido dos Filhos de Gandhy, eu me inspirei para criar o Afoxé Raízes Africana. Logo me veio uma memória minha de infância, naquela época eu não tinha nenhum vestido e minha mãe juntava vários panos amarrados para me vestir. De nó em nó, eles viravam uma roupa. Essa memória também me remete a uma forma de vestir africana. Fiz então uma roupa bem feminina, mas nosso cortejo é aberto para todo mundo, ele é para o povo”, contou Mãe Isabel, que também é uma das cantoras do Afoxé. 

A cultura Hip Hop também se mantém viva e presente na Baixada Fluminense a partir desses encontros de rua que misturam o grafite, as danças e a música. Para buscar seu sonho, a rapper Afrodite bxd girava a metrópole nas batalhas de rima, improvisando nos vagões e até pagando do próprio bolso para conseguir cantar em alguns espaços. 

“Nas batalhas, eu enquanto mulher e mc tinha que lutar muito mais. Já tive até que pagar para poder cantar nas rodas, ficava no pé dos caras. É muita história, foi por essas várias batalhas que eu cresci também enquanto artista e conheci as minhas principais referências que estão aqui na Baixada. Por isso, eu faço questão de levar o ‘bxd’ no nome porque é daqui que vem muito da minha inspiração, mas também essa é uma forma de carregar esse espaço sempre junto comigo.  Se eu cantar na Suíça, o nome da Baixada vai junto”, contou Afrodite. 

Apesar de servir como inspiração, viver de cultura na Baixada ainda é um desafio que exige coragem e abdicações. A Mãe Isabel fundou a Associação Cultural e Recreativa Afoxé Raízes Africanas sem qualquer ajuda ou fomento público. Além do cortejo, hoje o espaço fornece mais de 12 tipos de oficinas e distribui cestas básicas por todo o território. A artista está presente nos conselhos da cidade, mas denuncia que falta incentivo da Prefeitura. 

“Por aqui só vive de cultura quem mete a mão no bolso e bota para andar. Todos os convites que aparecem para gente se apresentar é tudo para fazer de graça, o governo não tem um olhar para nós. Durante a pandemia saiu o edital da Lei Aldir Blanc, mas aqui em Belford Roxo o Prefeito não distribuiu a verba. Esse dinheiro está lá na conta da Prefeitura, mas não chegou até a gente. Não há respeito pelo artista popular, é muito difcíil”, lamentou Mãe Isabel.

Apesar dos entraves com o governo e toda a crise pandêmica, aos 71 anos, Dona Isabel não parou com suas atividades. Para se reinventar, ela aprendeu a fazer lives no facebook e por lá continua cantando e fazendo apresentações semanais para seus seguidores, já foram mais de 120 lives realizadas. Depois de mergulhar nesse mundo digital, ela acredita que a nova geração tem nas mãos uma ferramenta potente para mudar o cenário cultural. 

“Essa juventude do rap tem nas mãos a força do dialeto. Com um viés mais combativo que a gente, essa geração é da briga, do grito e de botar a mão na mesa, e estão certos. O momento agora pede isso. A música rap manda o recado direto, reto e forte e isso é muito válido”, afirmou a Mãe Isabel. 

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