[Tribuna Rio Por Inteiro] Porque reivindicamos a Consciência Negra

Texto por
Rafaela Albergaria
Data
21 de novembro de 2018

 

Todos os anos, quando se aproxima o 20 de novembro assistimos a reações e inúmeros questionamentos sobre o dia da Consciência Negra, como se sua existência colocasse em risco a unidade da nação, reforçados pelo discurso de que o que nos falta é uma consciência humana. Nesse sentido, precisamos limpar terreno para entendermos porque reivindicamos o novembro negro, e sobre que princípios repousam os questionamentos contra sua existência.

O dia 20 de novembro é a data da morte de Zumbi, assassinado por bandeirantes no ano de 1695. Zumbi foi uma das principais direções do Quilombo dos Palmares, tomado como símbolo maior da luta do Povo Negro contra toda brutalidade da escravidão. Palmares resistiu por mais de um século as investidas violentas da Capitania de Pernambuco e chegou a agrupar com mais de 20 mil habitantes. Como marco da luta antiracista, a data passou a ser reconhecida oficialmente a partir da lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011, por pressão do movimento negro organizado pelo reconhecimento e memória sobre as violações levadas à cabo contra os negros desde a escravidão.

 

Zumbi e Dandara dos Palmares

 

Somos um país forjado pela violência, pelo extermínio dos povos nativos, pelo sequestro e escravidão de milhões de africanos que construíram esse país, mas que sempre estiveram alijados do acesso às riquezas produzidas. O que reivindicamos como expressão máxima de nosso convívio harmônico entre as diversas etnias foi forjado pelo estupro institucionalizado das negras escravizadas, que conheceram aqui o suicídio como forma de se libertar de toda brutalidade de existirem como simples mercadoria. Estas mesmas mulheres que tomaram como estratégia o assassinato de seus filhos, para que não os vissem submetidos a todas as formas de violência destinadas a eles pelo regime escravocrata.

Somos a nação que instituiu, com o fim da escravidão, uma radical política de eugenia como condição para a evolução. Segundo essa teoria o “embranquecer” da população era necessário para nos constituirmos como país evoluído, e para alcançar esse fim era preponderante o extermínio dos negros, que em alguns estados do país, como Minas Gerais, chegou a constituir 80% da população. As leis de transição que vislumbravam o branqueamento, começaram a surgir no contexto da proibição do tráfico negreiro como a Lei de Terras de 1850, que impedia os recém libertos de se apossarem de terras para subsistência, garantindo a continuidade de muitos na condição de escravos em troca de moradia e comida. A Lei Eusébio de Queirós de 1850, que tratava da imigração europeia para constituir o trabalho assalariado, previa uma série de benefícios aos imigrantes como incentivo ao branqueamento.

Na República Nova, essas políticas de busca do suposto “aperfeiçoamento das raças” se aprofundam e se materializam por novas leis, como a Lei de Cotas de 1934, que estabelecia cotas de migração para distintas etnias e impedia a entrada de outras no país: “Miguel Couto apresentou a emenda de no 21-E, onde proibia a imigração africana ou de origem africana e apenas consentia a asiática “na proporção de 5%, anualmente, sobre a totalidade de imigrantes dessa procedência existentes no território nacional”. A emenda de Xavier de Oliveira, no 1.164, proibia, para “efeito de residência”, a entrada de elementos “das raças negra e amarela, de qualquer procedência” (Geraldo, 2009, p.180). Essas políticas não se punham apenas como forma de impedir o acesso de negros às novas dinâmicas sociais através da contínua negação do povo negro como sujeito de direitos, mas fora acompanhada pela sua crescente criminalização. A principal política pública para os setores recém libertos era a prisão ou o extermínio. A Lei da Vadiagem de 1942 tornou crime a ociosidade, e em sua aplicação pairava o entendimento que mais de um negro na rua constituía formação de quadrilha.

No período da Ditadura militar iniciada em 1964, essa racionalidade seguiu orientando a atuação dos órgãos públicos, a conformação das políticas públicas e o sistema de justiça. A Lei de Segurança Nacional de 1967 institui penas mais duras para crimes contra o patrimônio, comumente praticados por grupos políticos contra o regime, estabelecendo penas maiores e mais severas que foram estendidas para os presos comuns, sem ligação com a luta política. Alcançado a anistia, a massa carcerária empobrecida e majoritariamente negra teve negado o direito de perdão dos crimes atribuídos, herdando as extensas penas.

Hoje a política de drogas faz as vezes de casar a negação de acesso a direitos com os reflexos mais brutais da criminalização dos pretos, pobres e periféricos. Em nome da suposta guerra às drogas, potencializa-se a repartição da cidade, com a cristalização das desigualdades sociais. Os territórios pretos, por toda essa construção, se cristalizam como essencialmente precários de todos os equipamentos públicos. A suposta insegurança é a justificativa para a não garantia de políticas sociais, e nesse sentido o braço coercitivo do Estado, eleito como a única política possível para esses “selvagens”, garante a eliminação física dessa população ao passo que forja novos mecanismos de controle social. Além disso, o genocídio promovido pelo Estado contra o povo negro, possibilita que grandes empresas do ramo de segurança, como a de armamentos, atinjam e extrapolem suas expectativas de lucro, oportunizando a inversão de capitais em busca de sua valorização.

 

foto: Luiz Baltar/Favela em Foco

 

A estratégia de eliminação do povo negro nunca foi abandona pelo Estado, apenas assume novas roupagens no contexto atual. Percebido que a previsão do Darwinismo Social de progressivo desaparecimento da população negra, pela sua inferioridade, não se realizou, mesmo com o curso do extermínio sistemático dessa população, que ainda hoje é maioria, somado a novos estudos científicos que desmontam a ideia da existência de raças e a crescente organização do movimento negro, acionam-se novas justificativas para tratar do racismo no Brasil. A suposta democracia racial toma lugar no discurso oficial, e a miscigenação é positivada como fator determinante na construção da nação e da convivência harmônica entre as raças para escamotear as profundas desigualdades raciais.

Num país constituído por longos processos de violação e extermínio, onde se processam rupturas com regimes e governos, o que nitidamente permanece é a violência deliberada contra um setor bem específico da população: são nossos corpos pretos que continuam caídos no chão. A saída para a construção de uma outra sociabilidade que aponte para a valorização da vida como valor central exige o combate do racismo estrutural, que nos concebe desumanizados nos constituindo, assim como matáveis.

Por isso nosso enfrentamento para mantermos a memória e a consciência do que é ser negro, de como fomos constituídos nesse país e da luta cotidiana por resistência e existência. O racismo não faz parte do nosso passado, ele é o passado e o presente somados. Ele determina o alto índice de assassinatos de jovens negros. Determina serem as mulheres negras o alvo principal de estupros e violência doméstica. Determina o fato de negras receberem um salário, em média 60% menor do que de um homem branco, exercendo a mesma função. Determina sermos maioria nas prisões, nos piores postos de emprego, destituídos dos direitos mais essenciais e minoria nos espaços de poder: nas universidades, na política, nos mais altos e prestigiados cargos.

Lembrar é resistência, lembramos por sobrevivência, para romper com o curso das violências que seguem nos matando dia após dia. Lembramos porque ainda hoje, somos vendidos como escravos.

 

Por menos que conte a história
Não te esqueço meu povo
Se Palmares não vive mais
Faremos Palmares de novo
(José Carlos Limeira)

 

*Rafaela Albergaria é assistente social, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESeC e do Instituto de Estudos da Religião – ISER. Mestranda no PPGSS- UFRJ.

 

Referências:
GERALDO, E. A “LEI DE COTAS” DE 1934: CONTROLE DE ESTRANGEIROS NO BRASIL, Cad. AEL, v.15, n.27, 2009. file:///C:/Users/Visitante/Downloads/2575-6829-1-PB.pdf
LEI COTAS 1934. file:///C:/Users/Visitante/Documents/Rafaela/Lei%20de%20Cotas.pdf
LIMEIRA,C. QUILOMBOS. Repertório nº 17, Salvador, 2011.2
LEI No 601, DE 18 DE SETEMBRO DE 1850. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm
LEI DA VADIAGEM 1941. DECRETO-LEI Nº 3.688, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941 http://www.camara.gov.br/sileg/integras/290126.pdf
LEI DE SEGURANÇA NACIONAL 1967, Decreto-Lei nº 314, de 13 de Março de 1967. http://www2.camara.leg.br/…/decreto-lei-314-13-marco-1967-3…
MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro, Editora Ática S.A, SP 1992

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