Após 20 anos sem Betinho, Ação da Cidadania retoma campanha de combate à fome

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Texto por
Saulo Pereira Guimarães
Data
9 de agosto de 2017

“Queremos manter esse espaço como um oásis no meio da gentrificação”, afirma Rodrigo “Kiko” Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, sobre a sede da organização. Projetado pelo engenheiro negro André Rebouças e construído sem trabalho escravo, o galpão do século XIX está no centro de uma disputa entre união, prefeitura e a entidade fundada em 1994. Conversamos com Rodrigo sobre esse e outros temas, e já avisamos que no próximo dia 12 ocorre a OcupAção, evento que lembra os 20 anos da morte de Betinho.

Casa Fluminense – Quais os principais objetivos da OcupAção?

A ideia da OcupAção é relembrar o Betinho, já que no dia 9 de agosto sua morte completa 20 anos. Coincidentemente, o evento acontece em um momento em que organizações como o Ibase e o ActionAid apontam a volta da fome no Brasil. Por isso, vamos aproveitar para arrecadar alimentos antes e durante o evento. Nas últimas duas semanas, já conseguimos 20 toneladas. Tudo que for doado será entregue aos nossos comitês de combate à fome e ao MUSPE, movimento que reúne os servidores do Estado com salários atrasados. O Zuenir escreveu há pouco tempo que o Brasil está com fome de Betinho. O nosso objetivo com esse evento é justamente matar essa fome de esperança e solidariedade, reconectando a Ação com quem a conheceu e apresentando-a às novas gerações. Nossa meta é receber 40 toneladas. Parece muito, mas o histórico das campanhas da Ação é de conseguir centenas de toneladas. É quase certo também que esse ano a gente volte a organizar a Natal Sem Fome.

Casa Fluminense – Quais são as principais atividades desempenhadas pela Ação hoje?

O Brasil tinha saído do Mapa da Fome em 2014. Com isso, começamos a levar a Ação para outros caminhos nos últimos dois anos. Um dos novos focos foi a questão da juventude negra da periferia, que vive em situação de vulnerabilidade. Queremos ajudar as atividades desse pessoal nas áreas de cultura, cidadania e empreendedorismo. Queremos aumentar o protagonismo desses jovens. Em vez de treiná-los para serem marceneiros ou técnicos, nosso esforço agora é para formar empresários, lideranças comunitárias, atores. Queremos que eles sejam contratantes, não apenas contratados.

E quais projetos estão sendo desenvolvidos nesse sentido?

A primeira grande parceria que firmamos foi com a Universidade da Correria, em meados do ano passado. A primeira turma era composta só por mães solteiras e como muitas tinham projetos na área de gastronomia, transformamos nossa cozinha industrial em um espaço de coworking para elas. Em junho do ano passado, criamos um núcleo audiovisual voltado para jovens de periferia. Ao longo do último ano, eles tiveram oportunidade de conversar com Wagner Moura, Camila Pitanga, Jeferson De e outros realizadores. O projeto terminou semana passada e, agora, a turma se dividiu em grupos que serão orientados pelos convidados e devem lançar seus projetos no segundo semestre.

O núcleo audiovisual também está co-produzindo dois filmes: um sobre os 25 anos da Ação e outro chamado “Pra quem fica”, sobre violência na periferia. Pretendemos também remontar um musical sobre a vida do André Rebouças que produzimos em 2014 e outro chamado “Menino no meio da rua”, que será relançado com o título “Ninguém nasce bandido” e ajudou lá atrás a formar a geração de atores que atuou no filme Cidade de Deus, quando a nossa sede ainda era em Santa Teresa. A ideia é repetir o ciclo de formação de 70 atores que desenvolvemos no passado.

Além disso, queremos montar em 2018 a Exposição Viva, em comemoração pelos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A ideia da exposição é que cada corredor tenha atores que façam os visitantes passar por situações típicas de racismo, machismo e outros tipos de preconceito. O objetivo disso é gerar uma experiência que marque as pessoas. Vale lembrar que a Ação mantém mais de 180 comitês de combate à fome no Brasil, quase 100 só no Rio. Só neste ano, nós já recebemos quase 5 mil latas de leite e, todos os meses, fazemos reuniões com representantes dos comitês.

Também alugamos o galpão para organizações que possam pagar pelo espaço e cedemos para eventos que não possam pagar, mas que tenham a ver com iniciativas o que apoiamos. Recebemos assim o Festival Internacional de Capoeira e filmagens de jovens cineastas, por exemplo. Há um esforço da nossa parte de expandir a nossa atuação em gestão, que melhore a captação de recursos.

O dinheiro para o terceiro setor está acabando, o governo já não pode mais ajudar tanto quanto antes e os financiadores estrangeiros estão com os olhos mais voltados para África e Oriente Médio, que realmente precisam mais de ajuda. Porém, como resultado disso, muitas entidades se transformaram prestadoras de serviços. Graças ao aluguel do galpão, conseguimos ter um modelo de negócios sustentável e apoiar projetos do nosso interesse. Queremos manter esse espaço como um oásis no meio da gentrificação da região portuária.

Evento vai celebrar a memória de Betinho e arrecadar alimentos

Como estão as negociações da Ação em relação ao armazém com a prefeitura e a União?

A Ação está aqui no galpão desde o ano 2000. Quem nos ajudou a conseguir o espaço foi a primeira-dama Ruth Cardoso, que coordenava o programa Brasil Solidário. Recebemos o prédio detonado, com a estrutura toda em madeira, cheio de mato e sem nenhuma infraestrutura. O projeto do André Rebouças tinha sido alterado na ditadura, que transformou o local em uma garagem de veículos blindados. Reconstruímos tudo: telhado, vigas e piso, em uma obra que teve coordenação do arquiteto Hélio Pellegrino. Em 2004, pedimos ao Governo Federal a cessão definitiva do espaço. Isso nos daria mais segurança para captar dinheiro para desenvolver atividades no local.

Em fevereiro de 2017, quando estávamos com o contrato de cessão na mão para assinar, a Secretaria Municipal de Cultura pediu o galpão ao Iphan. Nós já tínhamos fechado com a secretaria uma parceria para criar aqui o Memorial da Diáspora Africana, mantendo as atividades da Ação no local. Entretanto, agora eles querem o prédio todo para criar o Memorial e nos oferecem em troca um assento no conselho desse futuro museu. A prefeitura argumenta que o tombamento do cais do Valongo pelas Nações Unidas inclui o galpão. Isso não é verdade. O que ele prevê é que o cais ganhe um memorial de visitação, que explique às pessoas o significado do local. Ter o museu no galpão é um desejo do Iphan e não um requisito da Unesco. O que eu não consigo entender é por que o nosso projeto de Memorial não pode ser incorporado aos planos do governo. Acredito que a União queira escolher outro parceiro.

Na próxima quarta (10), haverá uma reunião em Brasília para tentarmos chegar a um acordo. O galpão é um espaço que só existe hoje por conta da Ação. Nós o preservamos da especulação imobiliária, somos partes da história desse prédio e não queremos ser apagados. Queremos trabalhar em conjunto. Resta eles quererem também.

Vinte anos após a morte de Betinho, qual é seu principal legado para nossa sociedade?

Conheci o Betinho ainda criança. Ele era como um tio para mim. Ele era um desses seres iluminados, com uma força e uma esperança contagiantes. Com o seu trabalho, ele foi fio condutor para a esperança chegar aos mais pobres. Sua capacidade de unir toda a sociedade em torno da questão social é o seu grande legado. Até hoje, o trabalho que a Ação desenvolveu na época dele me impressiona. Coordenamos um dos maiores movimentos de mobilização da sociedade brasileira em toda a história. Chegamos a alimentar 15 milhões de pessoas em uma época em que o país tinha 150 milhões de habitantes.

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A mensagem do Betinho, com as urgências apontadas há 20 anos, continua atual. “Quem tem fome tem pressa”.

O artista André Brown desenhou o Betinho

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