Tradução da entrevista publicada no blog do Inter-American Foundation (IAF)*
Larissa Amorim, coordenadora executiva da Casa Fluminense, organização donatária da IAF, explica como a Casa promove a participação da sociedade civil na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e no Brasil por meio da filantropia comunitária e outras ferramentas sociais.
Pedimos a Larissa que compartilhasse a abordagem da organização em relação ao uso da filantropia comunitária como uma ferramenta para avançar em sua missão e que falasse um pouco sobre sua perspectiva do campo na condição de jovem líder afro-brasileira e conselheira da rede de filantropia comunitária Rede Comuá.
O que a filantropia comunitária significa para você?
A filantropia comunitária é uma estratégia que visa fortalecer as comunidades por meio do fornecimento de apoio financeiro e técnico para melhorar o conhecimento, as tecnologias, as soluções e a liderança que essas comunidades já possuem. Trata-se de reconhecer, apoiar e unir-se a esses esforços comunitários para superar desigualdades históricas. Muitos grupos com os quais trabalhamos, como os da periferia do Rio de Janeiro, não recebem financiamento do governo nem de instituições internacionais. Os grupos são seus próprios e maiores financiadores, sendo os únicos responsáveis por apoiar o trabalho de desenvolvimento comunitário. Precisamos reconhecer esse protagonismo e ajudá-los a desenvolver sua capacidade de apresentar suas prioridades de desenvolvimento junto aos decisores.
As origens da filantropia comunitária no Brasil podem ser datadas desde os anos 2000, quando organizações internacionais ajudaram a estabelecer fundações comunitárias. Se nos aprofundarmos mais, veremos que durante o período de escravidão da população negra no Brasil, havia irmandades filantrópicas que se organizavam para comprar cartas de alforria para assegurar a liberdade das pessoas. Atualmente, o Brasil tem várias fundações comunitárias e fundos temáticos organizados na Rede Comúa de filantropia comunitária (outra donatária da IAF).
Acredito que o papel da filantropia comunitária seja o de fortalecer a sociedade civil e, por conseguinte, a democracia, e assim proteger nossos direitos e envolver decisores em nossas prioridades.
Como chegou à sua função atual?
Comecei como estagiária de comunicação na Casa Fluminense em 2015. Nossa missão é reduzir a desigualdade social na região metropolitana do Rio de Janeiro, e nossa estratégia foca o desenvolvimento da capacidade da comunidade de articular e promover seu próprio desenvolvimento.
Tornei-me coordenadora de comunicações da Casa Fluminense e então comecei a participar na Rede Comuá e a conhecer melhor os debates atuais dessa área. A rede sempre valorizou a participação de equipes que vão além da gerência executiva. Hoje, como coordenadora executiva da Casa Fluminense e conselheira da Rede, sou responsável pelo planejamento de todos os programas da Casa Fluminense, incluindo nossa estratégia de filantropia comunitária, que acompanha nosso trabalho de promoção do debate sobre políticas públicas e combate às desigualdades.
Como a filantropia comunitária pode promover a transparência e a capacidade de resposta do governo?
A Casa Fluminense tem um fundo comunitário, que é apenas uma parte do que fazemos. Criamos o fundo para cobrir os custos dos líderes locais com a participação em eventos e a produção de materiais. Em 2019, começamos a utilizar oficialmente a filantropia comunitária para fortalecer todos os nossos esforços com um convite à apresentação de propostas para grupos que procuram desenvolver agendas, soluções e instituições.
Para ajudar as comunidades a definir suas agendas, utilizamos nossa experiência em lidar com solicitações judiciais de informações para tornar os dados públicos mais acessíveis e compreensíveis. Além disso, ajudamos a facilitar a análise dos dados gerados pelos cidadãos por meio de ferramentas que permitem fazer pesquisas com os residentes sobre questões como a segurança, a saúde, a educação, o acesso à internet ou o emprego. Munidas com essas informações, as comunidades debatem suas visões e prioridades para o investimento público e privado. Em seguida, ajudamos essas comunidades a publicar as agendas para que sejam compartilhadas com autoridades municipais e candidatos a cargos públicos e usadas como ferramentas de prestação de contas em espaços como reuniões de câmaras e assembleias. Nos últimos três anos, trabalhamos com 18 comunidades para desenvolver suas agendas locais, sendo que 12 já foram publicadas e as demais estão em andamento.
Para ajudar as comunidades a desenvolver soluções locais, financiamos e apoiamos grupos comunitários que estão abordando diretamente seus desafios, como a coleta de lixo ou o acesso à água. Por exemplo, ajudamos um grupo a utilizar ferramentas de mapeamento para identificar locais na Baixada Fluminense que estavam em risco de inundação e desabamento de edifícios. Para promover o desenvolvimento institucional, ajudamos grupos comunitários informais a se registrarem como organizações da sociedade civil. Há pouco financiamento para apoiar a criação desses tipos de grupos, porque os financiadores preferem os resultados de projetos em vez de resultados organizacionais. A IAF é o raro financiador que nos ajuda a concretizar esse objetivo.
Como a Casa Fluminense promove a liderança das mulheres e a igualdade de gênero?
A igualdade de gênero surge claramente como uma preocupação local nas agendas que ajudamos as comunidades a desenvolver. Acabei de gravar um podcast sobre as próximas eleições municipais em que um dos temas é a economia do cuidado e os turnos extras de trabalho feitos por mulheres. Vemos mulheres que trabalham como administradoras familiares, mães e cuidadoras, líderes, administradoras de comunidades, tudo isso além de, muitas vezes, trabalharem para gerar renda. Estamos debatendo e discutindo com os líderes como criar um sistema melhor para a economia do cuidado no Rio de Janeiro que aborde a questão das desigualdades de gênero.
Março é um mês importante para nós, não apenas por causa do Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, mas também porque é o aniversário do assassinato de Marielle Franco, ocorrido em 14 de março. Marielle representa nossa luta contínua no combate à violência contra as mulheres, especialmente as afro-brasileiras e as defensoras dos direitos humanos.
Como você vê o setor de filantropia comunitária no futuro próximo?
O futuro da filantropia comunitária é de base local e ascendente, com as comunidades no centro das atenções e priorizadas no investimento social privado. Parece redundante dizer isso, mas não é o que acontece hoje em dia. As grandes agendas temáticas internacionais, como as questões de gênero ou de clima, ditam as modas e as tendências de financiamento, e não a dinâmica no local. As comunidades e os líderes comunitários adaptam suas atividades à disponibilidade de financiamento. Se quisermos avançar com o progresso social, precisamos fazer com que os recursos cheguem onde a vida e os problemas acontecem.
É por isso que estamos criando uma aliança com seis organizações com ideias semelhantes no Brasil para promover essa maneira de trabalhar num espaço específico, com base em como as pessoas que vivem lá já estão começando a lidar com os problemas. Podemos desempenhar um papel importante na pesquisa e na produção de informações nas áreas em que trabalhamos para tornar o desenvolvimento mais orientado por dados. No Rio de Janeiro, estamos lidando com uma mistura dinâmica de transporte, mobilidade urbana, saneamento, violência, transparência de dados públicos e saúde, entre outros assuntos. Em vez de definir temas, estamos construindo relacionamentos, promovendo trocas de conhecimento e facilitando a tecnologia e as soluções em nível local.