Na casa de Ana Cristina Quaresma, de 39 anos, ela é quem cuida do orçamento da família. O dinheiro que chega vem do trabalho como pedreiro do marido, Pedro Gomes Leonel, responsável por manter o casal e seus cinco filhos. Atualmente, a família não tem renda fixa e mora de aluguel no Jardim Iguaçu, em Nova Iguaçu. Durante a pandemia, Ana foi um dos mais de 3 milhões de moradores do estado do Rio de Janeiro que recorreram ao auxílio emergencial para sobreviver. Com acesso bloqueado há mais de 8 anos no CadÚnico, essa foi a primeira vez que a família teve acesso a um benefício do governo.
“Receber esse auxílio foi um alívio, porque no começo a gente ficou preocupado em como íamos manter as coisas de casa e as crianças. Durante a pandemia, com todo mundo em casa, o gasto foi muito maior”, contou Ana.
O Auxílio Emergencial foi responsável por garantir uma renda mensal para 3,51 milhões de pessoas no estado do Rio de Janeiro – no primeiro momento de crise da pandemia, isso representa 32% de toda a população fluminense. Dessa parcela, apenas cerca de 1,8 milhão estavam inscritos no CadÚnico, o Cadastro Único para Programas Sociais, responsável por identificar e incluir famílias de baixa renda em programas de assistência. Para a diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica e assistente social, Paola Carvalho, essa diferença entre pessoas que receberam o auxílio e aquelas inscritas no CadÚnico mostram a fragilidade econômica e de assistência que o Rio vive.
“Mesmo pessoas que não estavam cadastradas no CadÚnico precisaram receber o auxílio, isso mostra que não só a população que já vivia em um cenário de extrema pobreza foi atingida. A pandemia aumentou a vulnerabilidade da maioria dos trabalhadores, mas não só dos mais pobres. Ela também mostrou que boa parte da população, se não trabalhar hoje, não come amanhã”, concluiu Paola.
Não é só comida
Segundo o DIEESE, o preço médio de uma cesta básica no estado do Rio é de R$ 666,26. Para o cálculo, a pesquisa usa a média de uma família composta por 2 adultos e 2 crianças. Dentro desse cenário, uma compra do mês no Rio custa mais da metade de um salário mínimo. Na família da Ana, que é composta por 2 adultos e 5 crianças, o peso no orçamento é ainda maior.
“No início da pandemia ficamos com muito medo porque o meu marido é autônomo, ele trabalha de obra em obra. Mas é assim, ele chega de um serviço e já tem que sair para outro. E nesse meio tempo, tudo no mercado também aumentou, mas tem coisas que não dava para ficar sem. Recebemos da escola um cartão que vinha R$220 reais, o que para mim já era muita ajuda. Comprava o básico. Mas a questão não é só comida, pra ser sincera no meu caso, é muito mais moradia, ainda mais para gente que vive de aluguel”, explicou a dona de casa.
Além da alimentação, no Rio de Janeiro, a população ainda enfrenta as consequências da inflação diretamente no preço do aluguel e do transporte, que mesmo antes da pandemia já comprometia 1 ⁄ 3 da renda dos moradores das periferias do estado.
Renda básica universal é possível no Brasil?
Já existe uma lei que oficializa a criação de uma renda básica universal no país, esse dinheiro seria fornecido pelo governo para que cada brasileiro recebesse uma quantia suficiente para atender as suas despesas mínimas. Criada em 2004, a Lei nº 10.835, voltou a ser discutida recentemente, desta vez, no Supremo Tribunal Federal (STF), que em abril do ano passado, obrigou o governo a cumprir a lei e instaurar um calendário para implementação da renda básica para toda população brasileira. A representante da Rede Brasileira de Renda Básica conta que antes da pandemia esse plano parecia muito distante, mas que o auxílio emergencial mostrou que é possível instaurar esse programa no país.
“Nós nunca tivemos uma mobilização no Brasil, uma sensibilização para o tema da renda básica como tivemos durante o auxilio emergencial, foi ele que fez a roda girar. Quando a gente pensa numa perspectiva de desigualdade, a renda é um direito de cidadania – uma política de proteção, não de substituição de políticas públicas essenciais como a saúde, por exemplo. Hoje, no Brasil, só os mais ricos têm acesso a essa proteção de renda, com isenções e paraísos fiscais, tanto que mesmo no meio dessa crise os milionários ficaram ainda ricos”, explicou Paola.
Uma renda mínima em Jardim Iguaçu
Ana se orgulha da forma que faz a gestão do dinheiro da sua família, ela diz que é careta e só gasta com o que acha estritamente necessário. Com as parcelas do auxílio emergencial, além das contas e demandas básicas, ela começou a sonhar com uma casa mais confortável e segura para sua família.
“Onde eu moro é aluguel, mas enquanto estou aqui tenho que cuidar e deixar confortável para minha família. Por exemplo, a gente não tinha internet para as crianças e nem armário, os cinco tinham que dividir um gaveteiro. No período do auxílio fui me organizando para parcelar e comprar essas coisas, fui de pouco em pouco juntando para comprar uma geladeira — que já estávamos sem há 3 meses, um armário e por uma pia para poder escovar os dentes no banheiro”, explicou a dona de casa.
O auxílio emergencial foi a primeira porta de benefícios do governo que a Ana conseguiu ser incluída. Há 8 anos, a família tenta ter acesso aos programas de assistência do governo. Ela contou que sua inscrição do Cadúnico está bloqueada e ainda não conseguiu resolver essa situação nem no CRAS nem na Caixa Federal, que faz a distribuição dos benefícios. A cidade de Nova Iguaçu, onde vive, sofre com uma sobrecarga do CRAS. Segundo dados do Relatório Agenda Rio 2030, o serviço na cidade precisaria triplicar para conseguir atender a todos. Ana nunca conseguiu receber o Bolsa Família e até agora também não teve acesso ao Auxílio Brasil. Nova Iguaçu possui cerca de 156 mil pessoas cadastradas no CadÚnico, destas 80 mil estão foram do Programa Auxilio Brasil, novo benefício federal que substituiu o Bolsa Família.
“Seria bom se eu recebesse esse dinheiro, mas eles colocaram tantos empecilhos. Eu não tenho condições de sair da minha casa para ir toda a hora cobrar isso no CRAS aqui da região. Nesses anos todas as vezes que fui, eles mandavam eu aguardar mais 6 meses e retornar. Ainda tem o gasto de passagem toda vez”, contou Ana.
Com a volta das aulas presenciais, a família parou de receber as cestas básicas. Sem o Auxílio Emergencial e o Auxílio Brasil, hoje, o dinheiro dos serviços do marido voltou a ser a única renda da família.
“Se esses auxílios continuasse mais tempo ia ser muito bom, meu foco seria sempre em melhorar as coisas aqui de casa, dar o melhor para meus filhos”, contou a dona de casa.
Mais exclusão e empobrecimento em 2022
A falta de inclusão daqueles que já eram excluídos têm marcado a chegada do novo programa de distribuição de renda do governo, o Auxílio Brasil. Depois de 18 anos, o programa Bolsa Família foi encerrado pelo atual governo. Para substituir, o presidente, Jair Bolsonaro, enviou ao Congresso a Medida Provisória (MP) 1061/2021 que instaurou o programa Auxílio Brasil. O novo benefício começou a ser pago em novembro de 2021, mas tem sofrido críticas.
Uma pesquisa da Rede Brasileira de Renda Básica mostrou que a história de exclusão da família da Ana se repetiu por todo o Rio de Janeiro. No estado em que mais de 3,5 milhões de pessoas recebiam o auxílio emergencial, somente 967 mil foram incluídas ao novo programa. Isso significa que 2,5 milhões de cidadãos fluminenses ficaram desassistidos. Essa exclusão ocorre mesmo com as famílias que já estão inscritas no CadÚnico, dentro desse cenário, mais de um milhão de cadastrados não estão recebendo o benefício.
“O governo federal implementou esse programa sem uma perspectiva de aprofundamento das políticas públicas e sim em um caminho de retrocesso. A gente já vinha trilhando um norte com o Bolsa Família e deveríamos agora avançar. Mas a exclusão só aumentou. O governo criou um teto de inclusão que não se compromete em zerar a fila de espera do Bolsa Família ou em incluir quem já é inscrito no CadÚnico. O novo programa de auxílio ainda tem prazo de validade, só vai até o final deste ano, por isso digo que ele tem caráter eleitoreiro”, explicou a assistente social.