Por Nathália da Silva
Minha trajetória é fruto dos saberes do Morro do K11. Beirando as cachoeiras do Parque Natural Municipal de Nova Iguaçu, o Morro carrega muitas histórias sobre as matas. Uma vez meu avô me contou que lutou com um javali. Também lembro de ver uma capivara de pertinho quando era criança. E até hoje minha família e outros moradores do território utilizam as plantas como forma de tratar doenças e outros males de saúde.
As florestas que hoje são sinônimos de cura antes eram símbolo de busca por liberdade. De acordo com a cartilha Nossa Y-guassú, pessoas escravizadas nas fazendas de Vila Iguassú fugiam dos engenhos por meio das matas. O lugar que hoje é conhecido como K11 foi ocupado por africanos escravizados, era o Quilombo do Cauanza.
Apesar dessa herança quilombola não ser cultivada, eu sempre percebi algumas especificidades do local. Por exemplo, o Morro é dividido por quintais extensos que são habitados por gerações de famílias. No meu quarteirão, tenho uma lista de primos e tios que eram parentes dos meus avós maternos. Eu sou do quintal da Tina, do Didico e da Zélia. Assim, posso dizer que conheço quase todos os quintais do Morro: o quintal da tia Arminda, o quintal da tia Odete, o Morro da Botinha, sei andar pelo Vai-Vem.

Há relatos de que a família do meu avô veio de Minas direto para Nova Iguaçu. Porém, já ouvi que partiram da Bahia pra cá. Não sei ao certo nosso ponto de origem, mas reconheço a nossa chegada. Minha parentela se espalhou pela Baixada Fluminense. Tanto é que a maioria dos meus passeios na infância foram em outras cidades deste lugar: São João de Meriti, Nilópolis, Mesquita, Belford Roxo.
No dia 30 de abril é celebrado o dia da Baixada por conta da primeira ferrovia do Brasil, que ligava a Estação de Guia de Pacobaíba (Estação Mauá) até Magé. Na época, os rios da região funcionavam como pontos estratégicos para produção de alimentos para a cidade do Rio de Janeiro, além de ser a passagem do ouro que vinha das Minas Gerais. Com a inauguração da estrada de ferro, as relações comerciais e a ocupação da Baixada Fluminense foram transformadas.
Essa história toda foi no século 18. Mas ainda hoje os trens são os principais meios de transporte para a capital. A nós, baixadenses, foi imposto um modo de vida tão precarizado e desumano, que nosso território é conhecido como cidade-dormitório.
Foi através das estradas de ferro que meu corpo passou a atravessar a Baixada Fluminense para acessar a Faculdade de Comunicação Social da UERJ. Me sentia um peixe fora d’água. Que bairro é esse? Isso é perto de que? Como se chega até? O Japeri era quase minha segunda casa. Até porque, por dia, eram 2h40 dentro de um vagão. Sem contar com os outros transportes que utilizava para chegar no meu bairro. Em meio a essa circulação carioca, encontrar um baixadense era um presente. Posso dizer que era sinônimo de revisitar um quintal do K11: finalmente me via ali.

Há cinco anos, resido na cidade do Rio de Janeiro. A decisão não foi bem pensada. Mas desde então dizer que sou cria da Baixada Fluminense tem um tom diferente desde então. Sair do Morro do K11, em Nova Iguaçu, para morar na maior favela da América Latina, a Rocinha, me fez pensar sobre o tamanho que a minha cidade ocupa no meu coração. Em um espaço desconhecido, descobri que sou Nova Iguaçu da cabeça aos pés.
Nesse processo de alinhamento com sentimento de pertencimento, co-fundei o Observatório Y-guassú, uma instituição que pensa, relembra e produz memórias sociais e políticas da cidade de Nova Iguaçu. Enquanto cidade-mãe da Baixada Fluminense, a Nova Iguaçu protagonizou históricos que não foram contados pela mídia tradicional. Aliás, as cidades dessa região tem seus pioneirismos e revoluções apagadas.
Coube a nós, enquanto lideranças desse espaço, nos organizarmos para reescrever e recontar com a visão de lideranças comunitárias que estão há anos na linha de frente na defesa de direitos dos seus territórios. Deste processo, nasce a Cartilha Nossa Y-guassú, a primeira publicação do Y-guassú.

Além disso, junto com lideranças de diferentes partes da Baixada construo o Instituto BXD, uma iniciativa de geração cidadã de dados, mobilização e incidência política nos 13 municípios da Baixada Fluminense. No último ano, realizamos uma oficina de geração cidadã de dados para jovens agentes territoriais. Nosso intuito é produzir informações que condizem com a realidade dos nossos territórios.
Poderia me estender citando a atuação de lugares como o Voz da Baixada, o BXD in Cena, o Enraizados, o Centro Cultural Donana, a Onã Cultural, o Instituto Mirindiba, a Batalha do Coreião, o Quilombel, o Golfinhos da Baixada, a Casa Uivo e entre outras organizações e coletivos que exaltam a Baixada Fluminense enquanto espaço de produção de sonhos e conhecimento. Mas reafirmo de forma direta que a BXD é um grande quintal de pluralidade e potencialidade.
Hoje é dia de falar do amor! A Baixada Fluminense é o meu quintal. Território onde nasci e fui criada. O lugar onde já me reconheciam antes de eu mesma saber quem eu sou. Na capital, conhecem meu nome e sobrenome. Na Baixada, sabem minha história. O Fijó BXD, comunicador popular e músico de Duque de Caxias, diz que a identidade baixadense é o fazer baixadense. Assim, sempre estaremos atravessados pelo nosso território e pelo tempo de agora. Digo com tranquilidade e muito orgulho que meu fazer é baixadense e coletivo.
* Nathália da Silva é cria da Baixada Fluminense, jornalista, escritora e roteirista com anos de experiência em organizações do terceiro setor. Seu trabalho é guiado pela comunicação antirracista e objetiva a justiça social, o direito à memória e a valorização de territórios favelados e periféricos. Aos 25 anos, é coordenadora executiva do Y-guassú, coordenadora de comunicação do Instituto BXD, jornalista no Voz das Comunidades e no Jornal Fala Roça e assistente de comunicação na Rede de Observatórios da Segurança.