Além daquilo que se vê: a Baixada sob a ótica de suas belezas

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Texto por
Comunicação Casa
Data
2 de maio de 2022

por Filipo Tardim*

“Essa regra da impunidade acabava por transformar Nova Iguaçu num imenso “cemitério”, onde os trabalhadores ao sair para o trabalho e as crianças que brincavam vivem tropeçando em cadáveres. A população passa a se acostumar com a situação, justificando-a com o argumento de que seriam marginais os que estão morrendo”. (ALVES, 2003, p. 143) 

Crescendo sob o estigma da violência na Baixada Fluminense 

Nasci na beira do Rio Sarapuí, em Gramacho, e cresci em meio ao verde do Terceiro Distrito, no Parque Equitativa, que em 2009 viria se tornar Reserva Biológica ¹. Sou um caxiense raiz. Duque de Caxias possui muitas belezas naturais e arquitetônicas pouco exploradas e conhecidas por conta do estigma negativo que a Baixada Fluminense adquiriu ao longo das décadas, fruto de um histórico de violência e de bolsões de pobreza. 

Cachoeira do Garrão, Duque de Caxias (2021) – Foto: Filipo Tardim

No bairro que cresci, apesar de ser considerado “nobre” em comparação aos outros bairros do entorno, por causa dos sítios e casas de veraneio, cujos terrenos ocupavam quarteirões, também havia famílias humildes. Na época ainda era considerada uma área rural (um vizinho até tinha umas cabeças de gado), um lugar tranquilo, com grama na rua de chão batido, mas eu ainda era pequeno quando tive o primeiro contato com a violência na Baixada: um vizinho, negro, fora executado e seu corpo jazia próximo do terreiro da Mãe Francesa (Omindareuá), que tinha umas árvores frondosas na calçada e de noite era um local bem escuro. Ao longo dos anos, a violência eventualmente se fazia presente, quebrando a tranquilidade do lugar, distante do centro da cidade² .

Vila de Igoassu, Nova Iguaçu (2017) Foto: Filipo Tardim

 Ainda na infância, presenciei uma chacina em plena praça do Parque Paulista, com diversos corpos de jovens mortos a pedradas. Já era eu um jovem quando uma amiga perdeu a irmã também numa chacina ocorrida dentro de uma residência, na entrada de Nova Campinas. E até a fase adulta vi vizinhos que cresceram comigo também perderem suas vidas para violência. Era sabido o envolvimento de alguns deles com assaltos, demonstrando que a concepção de que “bandido bom é bandido morto” sempre se fez valer no território. Mas não dá para constatar que todos os mortos eram bandidos. A maioria era só pobre e preto mesmo. Assim, posso dizer que sou um sobrevivente. 

Todo jovem da Baixada Fluminense de certa forma é sobrevivente de uma política hostil. E eu atribuo minha “salvação” à educação. Os colégios de formação de professores existentes em Caxias eram uns dos poucos lugares que ofereciam capacitação profissional aos jovens de baixa renda no final da década de 90. Com pais humildes, vindos da roça, do interior do estado, foi a educação que deu uma guinada na minha vida. Fui estudar pra ser professor. 

Um outro olhar

 Minha paixão por fotografia começou ainda na infância, ao ganhar uma câmera manual com flash externo que queimava a maioria das fotos tiradas nos filmes de 12 poses, que era o que dava para comprar na época. Até hoje guardo alguns negativos. Mais tarde, já na era da fotografia digital, e já professor da rede municipal, comprei minha primeira câmera, de ‘incríveis’ 5 Megapixels. Foi com ela que tirei as primeiras fotos ao ir para o Centro de Referência Patrimonial e Histórico de Duque de Caxias e Baixada Fluminense (CRPH) em 2010. 

O CRPH é uma das instituições que gerenciam o Museu Vivo do São Bento (MVSB), um Ecomuseu de Percurso, o primeiro instituído na Baixada Fluminense. O MVSB está localizado no segundo distrito de Duque de Caxias, no bairro São Bento, no território da antiga Fazenda do Iguaçu, lugar de origem da ocupação portuguesa na região. É o CRPH que, no âmbito da Secretaria Municipal de Educação, oferece formação para professores sobre a história local, seja através de grupos de estudos (GEs) nas escolas que solicitam, seja através do curso de história da Baixada. Foi a partir desses cursos que comecei a conhecer não só a história, como também as belezas da Baixada Fluminense, visitando os locais por meio de estudos de campo. 

Praia de Piedade, Magé (2014) Foto: Filipo Tardim

Na medida em que meu trabalho foi se desenvolvendo nessa instituição, percebi que precisava de melhores equipamentos e comecei a investir. De 5 MP parti para uma, ainda de bolso, de 14 MP, a qual me rendeu algumas fotos que viriam a compor a exposição fotográfica itinerante “Lentes da Memória” . Depois tive a oportunidade de adquirir uma superzoom de segunda mão e finalmente, no final de 2013, consegui comprar minha primeira DSRL, que me proporcionou, junto aos estudos de campo do CRPH, belíssimas fotos da minha tão amada Baixada Fluminense. A ideia da exposição anteriormente mencionada era de mostrar registros fotográficos que buscavam reverter a visão estigmatizada da Baixada como lugar da violência e pobreza, de modo a valorizar a identidade e cultura local. A Baixada é linda, e temos o que mostrar!

*Filipo Tardim, mestre em Letras pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, professor da Rede Municipal de Duque de Caxias e militante da educação e meio ambiente.

Notas:

1 – Criada justamente na tentativa de preservar a floresta, suas nascentes e sua fauna da especulação imobiliária e extrativismo mineral. Para mais informações sobre a REBIO Equitativa, recomendo o livro “Unidades de conservação: com um estudo dedicado à Reserva Biológica Equitativa”, de Samuel Maia. 

2 – Sobre o assunto, recomendo a leitura do livro “Dos Barões ao Extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense”, de José Cláudio Souza Alves. 

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