As políticas de transportes públicos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro estão em um cenário de dualidade onde, de um lado, uma onda de Tarifa Zero alcançou 9 dos 22 municípios da metrópole, enquanto de outro, trabalhadores ainda chegam a gastar até 35% da renda com passagem para circular na Região Metropolitana, segundo dados do De Olho no Transporte 4.
O primeiro município a implementar Tarifa Zero foi Maricá, em 2014. De lá para cá, outras 8 cidades na metrópole e cerca de 19 em todo o estado também passaram a oferecer a política parcial ou integralmente nos municípios. Apesar desse avanço, a desintegração e a falta de qualidade do transporte público, pauta antiga no Rio de Janeiro, ainda pesa no tempo, no bolso e no bem-viver da população pobre e periférica.
João Luiz, conhecido como Jota, é produtor, MC, delegado nacional da juventude e morador de Nova Iguaçu. Ele precisa acessar a cidade do Rio de Janeiro frequentemente em busca de oportunidades de emprego e educação. Participante do Curso de Políticas Públicas de 2025 da Casa Fluminense, toda quarta-feira precisava ir ao centro do Rio para as aulas. Para chegar até lá, pegava pelo menos um ônibus e o trem, junto das suas três filhas.
“A gente sempre andou muito com elas no transporte público, as crianças estão acostumadas, mas não quer dizer que seja uma coisa simples. É uma viagem geralmente muito cheia e um período muito longo. Eu costumo gastar mais ou menos 2 horas da minha casa até o centro do Rio, tem vários percalços e várias possibilidades de problemas nesse meio de caminho”, relata Jota.
O tempo e o preço pesam na vida de quem precisa passar 2 horas no transporte público para acessar mais oportunidades e ainda pagar caro por isso. “Eu já cheguei a gastar R$800 de passagem de transporte público por mês. Depende de qual for o nível de trabalho e de necessidade, mas eu gasto no mínimo R$450 com transporte”.
Essa realidade coloca famílias como a de Jota em uma corda-bamba, onde precisam equilibrar no bolso quais oportunidades conseguem agarrar.
“Se eu não precisasse gastar com passagem, eu poderia investir em capacitações para mim ou para minhas filhas, em compras de mercado melhores. Acaba sobrando sempre pouco para poder ter o lazer, ter mais tempo de qualidade com a minha família. Certamente seriam muitas as possibilidades”, desabafa o artista.

A Casa Fluminense e diversas lideranças se motivaram em realidades como a do Jota para lutar pela Tarifa Zero e o acesso à cidade como o principal direito da população. Foi assim para coletivos como a Agenda Itaboraí 2030 e a Agenda Japeri 2030, que conquistaram a tarifa zero nos seus territórios e atualmente vivem uma política, resultado da luta de anos de incidência política, mobilização e até enfrentamentos a representantes do poder público.
“É definitivamente uma vitória, a sensação é de um pontapé inicial. Uma das maiores dificuldades nesse processo é a implementação da política e, apesar de tudo, ela está na rua”, compartilha Inara Souza, integrante da Agenda Itaboraí 2030.
Tarifa Zero não é moeda eleitoreira!
Em um ano de pré-eleições, a disputa por votos já começou e a preocupação das lideranças é em como essa política pública vai ser implementada. A luta ganha novos rumos: cobrar pela implementação da tarifa zero em cidades que não têm e pela garantia onde já foi implementada, além de impedir que essa conquista seja usada como estratégia eleitoral, desassociada da luta de lideranças e organizações.
Vitória Souza, integrante da Rede de Lideranças da Casa Fluminense, estudante de comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro e moradora de São João de Meriti, atua pautando sua cidade nas redes sociais há pelo menos 2 anos. Entre os temas pautados, frequentemente ela compartilha sobre o transporte público.
“Eu diria que hoje tem um olhar populista para a Tarifa Zero, porque é uma oportunidade de obter votos, mas o debate não é de hoje. Se você olhar o Movimento Passe Livre em 2013, isso já era uma grande questão. No Brasil, isso tem se espalhado por várias cidades, aumentando a qualidade de vida. Aqui no Rio, vemos Maricá e parece um sonho, mas o tema ganhou força porque tem gente empenhada em fazer isso acontecer”, analisa Vitória.

Muitos municípios têm seguido uma lógica de falta de transparência, planejamento e investimento quando implementam a Tarifa Zero. Essa é a principal fragilidade da Tarifa Zero em Japeri, por exemplo. “Não houve uma audiência pública com a população, sociedade civil, uma explicação de como está sendo feito […] Tem estrada que precisa ser pavimentada, precisa de ponto, tudo isso também impacta. Faltou um planejamento!”, afirma Evandro Moyses, uma das lideranças de Japeri que luta há mais de 10 anos pela melhoria do transporte público do município.
Desde a fundação da Casa Fluminense em 2013, a agenda de mobilidade tem um papel central na atuação da organização. A luta pelo transporte gratuito, seguro, de qualidade e com menos impacto ambiental sempre esteve presente nas diferentes edições da Agenda Rio, produzidas a partir das escutas e contribuições de moradores dos 22 municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

“A Casa começou a discutir a Tarifa Zero há mais de 10 anos, em um período em que nenhum município da metrópole tinha transporte gratuito. Desde a primeira Agenda Rio que publicamos em 2014, a gente já considerava o transporte ser mais barato e, gradualmente, se tornar gratuito como uma política prioritária a ser implementada”, compartilha Vitor Mihessen, coordenador geral da Casa Fluminense.
A Casa participou de mobilizações para a construção de políticas de mobilidade justas e sustentáveis em toda a metrópole do Rio. Desde a inclusão do transporte na Constituição Federal brasileira em 2015, e os protestos contra o aumento das passagens dos trens, que já resultaram em redução de passagem e na recriação da Tarifa Social, até o protocolaço de 2024 que apresentou um projeto de lei (PL) de gratuidade no transporte público em sete cidades do Brasil, entre elas, São Gonçalo; e a campanha Busão 0800 durante o show da Lady Gaga no Rio de Janeiro, como exemplos mais recentes.



Após anos de luta, a organização comemora, junto de lideranças de diferentes municípios, a vitória da implementação de transportes gratuitos. Ainda assim, diante da expansão da tarifa zero, a preocupação é de que o reconhecimento seja associado a uma política de governo, e não da força de uma luta coletiva, organizada e liderada pela sociedade civil.
“Não queremos que uma política tão necessária seja sucateada para responder às vontades de grupos de interesse. Nós entendemos que esse é o perigo do ‘hype’: uma implementação que, ao ser mal planejada, de forma intencional ou não, não compreenda e considere as demandas reais da cidade e da sua população”, afirma Inara Souza, da Agenda Itaboraí 2030.
Para lideranças como Inara, para que a tarifa zero se consolide como uma política pública permanente e com qualidade, é necessário fortalecer os mecanismos de participação social, garantir fontes sustentáveis de financiamento e continuar reconhecendo o protagonismo da sociedade civil organizada na luta pela implementação da política. A verdadeira vitória não é apenas tirar a catraca, mas garantir que ela continue livre, com dignidade, segurança, escuta e compromisso com quem mais precisa dela.
Quem paga essa conta?
No Brasil, existem mais de 140 cidades com tarifa zero. Diferentes exemplos de sucesso e diferentes estudos comprovam como é possível implementar essa política pública sem que isso afete o orçamento público. Na pesquisa “Financiamento Extratarifário da Operação dos Serviços de Transporte Público Urbano no Brasil”, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) identificou diferentes fontes de recursos para subsidiar os gastos com transporte público, incluindo uma taxa sobre os combustíveis, por exemplo.
“O que propusemos foi que o transporte público fosse tratado como uma política pública de fato e arcado com recursos orçamentários. Para isso, fizemos três modelos demonstrando de onde tirar e quais impostos teriam de ter alíquotas mais altas para cobrir o custo do transporte público para todos os municípios que precisassem de sistema de transporte coletivo”, compartilha Cleo Manhas, Assessora Política do Inesc.
Em geral, nos municípios com transporte pago, são os usuários que arcam sozinhos pelos custos do sistema público de mobilidade através das passagens. O transporte público hoje é o único direito que a população precisa pagar, e caro, para acessar.

“Precisar pagar tanto dinheiro de passagem pra ir e voltar da faculdade me motivou a me mudar de casa. É bizarro, porque moro perto de São João de Meriti, mas no Rio de Janeiro, aí já não pago mais passagem, já que tem a gratuidade universitária que só funciona aqui”, relata Vitória.
Essa também é a realidade de Helissan Cavalcante, moradora da Zona Oeste do Rio de Janeiro, mestranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-aluna do Curso de Políticas Públicas da Casa Fluminense. Para ela, acessar à educação é uma rotina marcada por longas horas em um transporte desintegrado e com um custo financeiro alto.
“Acredito que eu gasto uns 300 reais de passagem por mês. Ainda tem essa questão com a bilhetagem do Jaé, que eu tenho que distribuir a quantia entre os cartões, senão fico na mão, porque o RioCard não passa mais nos ônibus, enquanto os trens não aceitam o Jaé.”, compartilha Helissan.
Segundo dados do Cobradô: Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados e São João de Meriti têm algumas das passagens de ônibus mais caras da metrópole, custando R$ 5,95. Além disso, o trem custa R$7,60 e o Metrô Rio é o mais caro do Brasil, custando R$ 6,90.
“Se o preço fosse mais justo e correspondesse à boa qualidade, tempo de espera e de trajeto, tivesse mais segurança, com certeza seria menos pesado pra quem mora em bairros mais distantes da Zona Oeste e só tem o trem como opção viável”, defende Helissan.
Hoje, a luta por transporte público na Região Metropolitana do Rio vive diferentes entraves. A implementação do Jaé; o aumento da passagem do Metrô Rio; a possibilidade de expansão do metrô para a Gávea; as fragilidades de implementação de tarifa zero sem planejamento adequado, a desintegração dos modais, a superlotação, a falta de segurança, de qualidade dos veículos e os longos tempos de deslocamento. Tudo isso pesa no bolso, no tempo e na vida de quem mais precisa dos transportes públicos para se deslocar pela metrópole.

Um caminho para o direito à cidade
Sonhar com um transporte público gratuito e integrado não é mais algo distante. Por isso, organizações como a Casa Fluminense, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e lideranças sociais acreditam na tarifa zero na implementação do Sistema Único de Mobilidade (SUM) como uma política cada dia mais próxima. O SUM, é uma proposta que busca organizar e integrar os transportes em um sistema unificado, com financiamento público, planejamento e gestão integrada.
“O SUM que defendemos inclui a tarifa zero na medida que organiza a mobilidade, tanto por transporte público como a mobilidade ativa, integrando modais e articulando-a com outras políticas, tais como trabalho e emprego e moradia, por exemplo”, compartilha Cleo.
Mais do que viabilizar a tarifa zero, o SUM pode ser a garantia de que o transporte público seja planejado como uma política federal, e não seja usada com uma bandeira de governo, reduzindo a moeda eleitoral. A ideia é que a mobilidade seja tratada como direito social, nos mesmos moldes de políticas como o SUS na saúde e o SUAS na assistência social.
Enquanto o SUM não avança e o transporte público na metrópole do Rio de Janeiro ainda é usado com uma disputa eleitoral, a luta continua e ela é protagonizada pela sociedade civil que busca pela implementação da tarifa zero onde não tem e exige qualidade onde já tem, mas pode melhorar. Pressionando por mudanças estruturais, tendo como horizonte um futuro em que a mobilidade urbana seja efetivamente um direito sem tarifas, sem barreiras, com qualidade, sustentabilidade e segurança.