por Lucas Martins
O Censo Demográfico se dedica a responder uma série de perguntas que visam dar luz às desigualdades presentes no país. As informações da pesquisa são associadas a distintas unidades geográficas, podendo estar relacionadas à nível nacional, estadual, municipal, por bairro ou até ao setor censitário, a menor unidade político-administrativa retratada.
Só é possível pensar na criação e manutenção de políticas públicas, assim como o planejamento do setor público e do setor privado, com dados e informações estatísticas detalhadas que reconheçam a realidade da população e do território. Neste sentido, com os resultados da pesquisa torna-se possível identificar o perfil da população, compreender questões relacionadas à renda, trabalho, gênero, cor/raça, escolaridade, saúde, moradia, mortalidade, entre muitas outras temáticas que auxiliam numa análise mais completa do território.
Em suma, os recursos utilizados no censo são caracterizados como investimentos e não gastos, pois é com base nos produtos do censo demográfico que os governos podem, por exemplo, economizar orçamento público, ao endereçar os locais certos para se aplicar transformações estruturantes, identificar áreas prioritárias para investimentos habitacionais ou em saúde pública, possibilitando uma atuação mais assertiva e efetiva, de acordo com as necessidades populacionais.
No cenário pandêmico atual – e até mesmo para pensar no cenário pós-pandêmico – é urgente que a tomada de decisão seja baseada em dados demográficos, econômicos e sociais confiáveis, fomentando o uso de bases de dados qualitativos e quantitativos fidedignos, que servem de referências há mais de uma década para análises das desigualdades e lacunas a serem enfrentadas pelo país, estados e municípios.
Vale lembrar que a periodicidade da pesquisa é de 10 em 10 anos, mas o que deveria ter ocorrido em 2020 já foi uma vez adiado para este ano por conta da pandemia e, consequentemente, às ações restritivas à circulação de pessoas e de garantia à proteção da população. Contudo, mesmo havendo 11 anos desde o último Censo, e apesar da defasagem dos dados, os mesmos ainda são referência para estudos nacionais.
Em outras palavras, a discrepância entre os dados do último recenseamento com a realidade vista hoje no território aumenta a cada dia. E este cenário não é diferente no âmbito estadual e na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Neste sentido, em 2020, a Casa Fluminense através do Mapa da Desigualdade, cita uma série de desafios encontrados no trabalho de levantamento e disponibilização de indicadores que retratam os abismos sociais vividos na metrópole do Rio de Janeiro, sendo os principais e mais recorrentes: a escassez e a desatualização dos dados.
Ainda na publicação foi defendida a necessidade da produção de dados de forma regular, periódica e confiável, assim como foi feito o alerta sobre o risco de apagão estatístico devido a série de cortes de orçamento e ao adiamento do Censo – ameaçando a transparência de dados, indispensáveis para a luta por justiça econômica, racial, de gênero e socioambiental.
Apesar do cenário de atraso, surgiram novos esforços para adiar o Censo Demográfico por mais um ano, o que dá margem para que se intensifique o apagão estatístico. Além disso, é válido destacar que o próximo ano também será marcado pelas eleições, o que poderia influenciar no receio por parte do governo federal em realizar a pesquisa e ter que apresentar dados que possam prejudicar uma eventual reeleição. Afinal, se não há dados, não existem problemas, pelo menos em teoria.
Já em março deste ano, o Congresso Nacional protagonizou mais um ataque direto ao Censo Demográfico através de um corte de R$ 2 bilhões, valor que o IBGE já considerava insuficiente, para R$ 71 milhões – o que, na prática, inviabilizaria a realização da pesquisa em 2021, forçando a mais um adiamento. Entretanto, após sanção presidencial ao orçamento, o valor foi reduzido ainda mais, chegando a apenas R$ 53 milhões, o que representa 1,5% dos R$ 3,4 bilhões pedidos inicialmente pelo IBGE.
Em resposta ao corte de verba, em abril, o ministro Marco Aurélio determinou que fossem adotadas medidas para a realização do censo ainda neste ano. Em sua decisão, de caráter liminar, é citado o artigo 21, inciso XV, da Constituição de 1988, que diz que “é dever da União organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional”. Além disso, o ministro também questiona como implementar políticas públicas que garantam os direitos fundamentais previstos na Constituição sem o prévio conhecimento das necessidades locais.
A decisão chegou ao Supremo Tribunal Federal neste mês, onde foi decidido que o governo federal é obrigado a realizar o Censo Demográfico, não mais em 2021, mas somente no próximo ano, com dois anos de atraso. Dentre os argumentos dos ministros que votaram a favor, é citada a negligência estatal com a não realização da pesquisa e as dificuldades associadas à pandemia que os recenseadores teriam ao realizar o Censo ainda neste ano.
Dada a determinação, a recomposição orçamentária de 2021 é urgente, de forma a garantir o repasse de recursos ao IBGE ainda neste ano, para que o mesmo possa garantir as etapas preparatórias e fundamentais para a realização da pesquisa em 2022.
Dito isso, ressalta-se que a saída mais lógica e segura para a crise pós-pandêmica é, sem dúvidas, a valorização da ciência, assim como a adoção de dados e informações confiáveis sobre a realidade para que tanto os governos municipais e estaduais, mas, sobretudo, a União, possam atuar com maior assertividade na alocação de recursos dos entes federativos, seja na educação, com o Piso Nacional da Educação Básica, na saúde, com o Piso Nacional da Atenção Básica, em obras de infraestrutura na habitação, saneamento, mobilidade urbana e segurança pública.
Deste modo, é fundamental que se lute pela realização da pesquisa e pela valorização e fortalecimento do próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), assim como outras instituições públicas de pesquisa, para que se garanta o levantamento e divulgação de dados que possibilitam conhecer o contingente populacional, informações básicas para a orientação e implementação de políticas públicas para redução de desigualdades e promoção de bem-estar. E se o caminho para alcançar essas metas é através de informações confiáveis, as tentativas de não realização da maior pesquisa sobre a população brasileira deve ser caracterizada como descaso e negação à garantia dos direitos sociais estabelecidos constitucionalmente.
*Lucas Martins é assessor de informação da Casa Fluminense, geógrafo formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-graduando em Análise Ambiental e Gestão do Território pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE