A crise da educação foi aprofundada pela pandemia e esse impacto pode ser mensurado a partir dos últimos dados da principal prova do país, o Enem. Se em 2019 o Brasil registrou a menor taxa de faltas da história do exame, no ano passado, os dados do Ministério da Educação (MEC) mostraram um cenário completamente diferente: as abstenções bateram recorde e chegaram a 55,3%. Em meio a discussão sobre a retomada das aulas presenciais, os pré-vestibulares comunitários espalhados pela metrópole do Rio fazem um alerta importante sobre o futuro daqueles que já estão saindo da escola.
Na Baixada Fluminense, em São Gonçalo e na capital, coordenadores e professores voluntários contam como foi atravessar na periferia esse primeiro ano de ensino remoto. Nas áreas mais vulneráveis da metrópole são esses projetos que apontam caminhos aos jovens e adultos do território que buscam chegar às universidades. Espaços como os prés também foram decisivos nas construções de lideranças sociais e políticas como Marielle Franco, que foi aluna do Curso Pré-Vestibular do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré. A vereadora enxergava nesses projetos uma possibilidade de construção de cidadania, articulação coletiva e militância. Após 3 anos do seu brutal assassinato, seu legado permanece e inspira outros jovens a seguir o mesmo caminho.
Falta de internet aumentou a evasão nos prés
Uma pesquisa feita pelo Congresso Nacional da Juventude, em junho do ano passado, com mais de 33 mil jovens mostrou que 30% deles pensam em abandonar a escola depois da pandemia. A evasão, que sempre foi um problema enfrentado pelos pré-vestibulares comunitários, se tornou ainda maior durante a pandemia. Na soma dos oito projetos entrevistados, a cada 5 alunos matriculados, apenas 1 permaneceu acompanhando as aulas. Segundo os coordenadores, os principais fatores que contribuíram para a evasão dos alunos foram a falta de acesso à internet e de espaço adequado para estudar dentro de casa. Os dois temas estiveram presentes no Infográficos da Desigualdade, na série especial sobre covid. A Casa apresentou que na Região Metropolitana do Rio, apenas 57,6% das casas têm acesso à banda larga e que em 300 mil domicílios mais de 3 pessoas dividem o mesmo quarto.
Foi esse o cenário enfrentado pelo pré-vestibular comunitário da Associação Ampara, em Queimados. Segundo dados do Mapa da Desigualdade, menos de 30% das casas da cidade possuem banda larga. O coordenador do pré, Jorge Peixoto, contou que mesmo fornecendo apoio de recurso aos estudantes, o projeto esbarrava em problemas estruturais. “Tentamos pegar pacote de dados para os alunos, mas às vezes o bairro não tinha boa conexão nem para o sinal de celular”, explicou Peixoto. O grupo chegou a ter 70 inscrições, mas apenas 10 alunos permanecem nas aulas.
Na Zona Oeste do Rio, a situação é a mesma. Para tentar se adaptar a essa nova conjuntura, o pré Santa Cruz Universitário transferiu as aulas para o whastapp, os professores passavam a matéria através de áudios e fotos. Segundo uma das coordenadoras do projeto, Jéssica Alves, o aplicativo de mensagens se tornou estratégico para tornar o acesso dos alunos as aulas mais fácil. “Essa era a ferramenta mais democrática já que muitos planos de celular colocam o aplicativo com uso liberado. Isso foi decisivo para a gente se manter até conseguir reorganizar o apoio da Casa”, contou a coordenadora. Mesmo com as adaptações, apenas 20 alunos dos mais de 80 matriculados seguiram nas aulas.
Além da internet, o agravamento da desigualdade como um todo atingiu em cheio a rotina de estudo dos alunos. Foi por conta disso que uma série de grupos da sociedade civil se mobilizaram no ano passado no movimento Adia Enem. A coordenadora de projetos do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Patrícia Bizzotto, alertou sobre o desequilíbrio que a última edição do exame pode causar no perfil dos estudantes universitários do nosso país.
“O Enem ter acontecido da forma como aconteceu, com o número de abstenções que teve, só favorece os estudantes das classes privilegiadas. Eles sim tiveram a oportunidade de garantir um ambiente em casa ‘blindado’ sem ter que se preocupar com dinheiro, trabalho ou lotação no transporte. Para uma pessoa pobre, ter perdido esse último ano significa um atraso muito grande. Pode ser que no futuro uma outra oportunidade para ingressar no ensino superior demore muito para chegar ou simplesmente não chegue”, conclui Patrícia.
Crise do coronavírus torna incerto o futuro dos prés comunitários
Em Campo Grande, os organizadores do pré-vestibular comunitário Esperança Garcia muitas vezes se dividiam entre as aulas e outras demandas emergenciais que foram aparecendo durante a pandemia. O representante do pré, Igor Gentil, conta que foi preciso ajudar alguns alunos com cestas básicas. “Nós vivemos em uma das regiões mais pobres do Rio, tinha gente passando fome. Não tem como ter muita motivação dessa maneira. Nós professores, nos sentimos imobilizados”, contou Igor. O pré Esperança Garcia está avaliando se vai abrir novas turmas online neste ano. Com 50 matriculados, eles encerraram 2020 com apenas 13 alunos.
No Jardim Catarina, em São Gonçalo, o pré-vestibular Nós por Nós, iniciou suas turmas com 48 estudantes matriculados mas, apenas dois acompanharam as aulas até o final. O grupo se mobilizou durante a pandemia para distribuir cestas básicas no território e agora planeja uma reforma no espaço do pré visando um futuro em que as aulas presenciais vão voltar a ser uma realidade. A coordenadora Marcyllene Maria conta que o projeto optou por não iniciar novas turmas por enquanto. Ela lamenta a situação já que o pré é o único do bairro. “Sabemos da nossa importância para o território, mas aqui na periferia os protocolos não chegam. Sem boa estrutura não dá para manter nem os alunos nem os professores motivados”, explicou Marcyllene.
A criação de um 4º ano do ensino médio é uma das maneiras que o estado de São Paulo e do Maranhão encontraram para que os alunos do 3º recuperem parte da aprendizagem que ficou defasada. Para Patrícia Bizzotto, esse é o papel de recuperação de ensino já desempenhado por muitos prés comunitários, falta apenas que eles recebam apoio e orientação do governo.
“As Secretarias de Educação deveriam olhar para esses projetos como olham para as escolas, principalmente nesse momento de pandemia. Os prés são uma ferramenta fundamental que estão na linha de frente. Sem eles, a gente vai acabar voltando para aquele perfil de universitário que representa apenas as classes privilegiadas como tínhamos há alguns anos atrás”, afirmou a coordenadora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV.
Prioridade para o Projeto UERJ
O foco dos prés comunitários agora é a prova da UERJ, que resolveu adiar o exame do ano passado por conta da pandemia e remarcou o exame para o dia 2 de maio. Os coordenadores acreditam que a universidade fluminense é a melhor alternativa para os seus estudantes por conta dos programas de assistência e cotas, que ajudam a incluir e garantir a permanência dos alunos mais vulneráveis. Por isso, nesses projetos, o ano de 2020 ainda não acabou. Com apoio do Fundo Casa, os prés vão buscar alternativas de permanecerem resistindo também em 2021. A coordenadora de mobilização da Casa, Fabbi Silva, falou sobre o perfil dos alunos que são atendidos e a importância de fortalecer o trabalho que os projetos desenvolvem.
“Sabemos que na ponta do lápis os mais prejudicados pela crise na educação são os alunos vulneráveis socialmente. E, são os prés que acolhem esses estudantes vindo da escola pública, que este ano sofreram ainda mais com a falta de assistência e planejamento do governo. Os coordenadores e coordenadoras depositam muito investimento de tempo, estudo e vontade de fazer dar certo, eles vivem na pele o medo desse processo de sucateamento da educação. A estratégia do Fundo é continuar fortalecendo os prés com apoios financeiros, monitorias e estreitamento de rede a fim de minimizar os impactos dessa crise” afirmou a coordenadora.