Por Silvia Noronha
Dos sete instrumentos de gestão que integram o Painel de Monitoramento lançado pela Casa Fluminense em abril passado, o Plano Diretor é o único já elaborado pelos 21 municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, muito embora apenas seis tenham revisado o documento no prazo estabelecido de 10 anos (Itaguaí, Magé, Nova Iguaçu, Queimados, Rio e São Gonçalo. Belford Roxo está vencendo este ano). O básico – e super importante – é saber se o seu município elaborou um bom plano, de forma participativa, e se começou a implementá-lo, também com controle social, respeitando as prioridades estabelecidas. Entretanto, no atual momento do país, esses talvez não sejam os principais pontos relativos ao tema. Especialistas ouvidos pela Casa Fluminense alertam para o risco de descontinuidade desse processo, já que os planos estão deixando de ter o lastro político necessário na esfera federal.
“O planejamento supõe um Estado interventor. O pano de fundo do Plano Diretor brasileiro é o Estado de Bem-Estar Social. Sem essa base, os planos podem ficar sempre patinando, com uma ou outra experiência em alguns municípios, mas uma política nacional que estimule isso não temos mais”, avalia Alex Magalhães, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/ UFRJ).
Segundo Alex, a execução dos planos só se generalizou em 2005 porque houve uma campanha nacional séria, capitaneada por uma pessoa com credibilidade, que foi a urbanista Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). De fato, conforme se vê no Painel de Monitoramento, quase todos os municípios da RMRJ aprovaram os seus documentos no ano seguinte à campanha.
Alex observa que a influência do neoliberalismo, associado ao atual governo federal, tende a fortalecer a ideia do planejamento com corte empresarial, por exemplo, as operações urbanas consorciadas e as parcerias público-privadas (PPPs). Em consonância com essa vertente, a União criou o Programa de Parceria de Investimentos (PPI) “para fortalecer a relação entre o Estado e a iniciativa privada”. Porém, esse caminho tira a centralidade da ação pública. “A ideia de ação pública – com protagonismo municipal, sobretudo – muitas vezes colide com a de livre mercado e as ‘n’ formas de privatização do poder”, afirma Alex.
A importância do planejamento urbano para a construção de um Rio Metropolitano mais igualitário permeia a Agenda Rio 2017, lançada no ano passado pela Casa Fluminense e organizações parceiras dos 21 municípios da região. O Mapa da Desigualdade, também elaborado pela Casa, apresenta as gritantes desigualdades territoriais da RMRJ, evidenciando a necessidade de planejar um futuro mais justo para todos.
Regina Bienenstein, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (Nephu) e professora titular do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, ambos da Universidade Federal Fluminense (UFF), também vê o momento com bastante preocupação. Para ela, o instrumental voltado para o planejamento urbano está sendo desmanchado pelo governo federal.
Regina cita como exemplo a Medida Provisória (MP) nº 759 que, segundo ela, “destrói a legislação de regularização fundiária, tornando muito mais difícil essa situação nas áreas mais pobres, mas facilitando para os condomínios de alta renda que hoje são irregulares”. Prestes a virar lei, a MP também institui novos mecanismos para a alienação de imóveis da União, acabando com a política de ocupação social dos imóveis federais.
História dos planos diretores
Os Planos Diretores municipais foram instituídos pelo Estatuto da Cidade (lei 10.257, de 2001), que regulamentou a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano prevista na Constituição Federal de 1988. “Foram necessários mais de 11 anos de luta para que fosse concretizada a lei que daria possibilidade de tratar a cidade com a preocupação de, pelo menos, diminuir a exclusão socioambiental. O Estatuto da Cidade nos dá todos os instrumentos para isso, só que não é aplicado”, resume Regina, que integra o Conselho Municipal de Política Urbana de Niterói, representando a UFF. Ela lembra ainda que a luta pela reforma urbana vem desde antes da ditadura militar. Integrava as chamadas reformas de base.
Conforme explica a cartilha do Instituto Pólis, o Plano Diretor deve fazer cumprir as determinações do Estatuto da Cidade, seus princípios e diretrizes, dentre eles: propiciar o crescimento e desenvolvimento econômico local em bases sustentáveis; garantir o atendimento das necessidades dos cidadãos promovendo a qualidade de vida e justiça social; garantir que a propriedade urbana cumpra sua função social. O objetivo é organizar o crescimento e o funcionamento do município como um todo, incluindo áreas urbanas e rurais.
A primeira etapa é o diagnóstico, que deve ser elaborado a partir da leitura técnica e comunitária da realidade local. Essas informações são sistematizadas, diretrizes são aprontadas e as prioridades devem ser elencadas. Tudo com participação social. No final, o documento deve ir para a Câmara de Vereadores, com audiências públicas. Após sua aprovação, ele vira uma lei municipal e o plano plurianual (PPA), as diretrizes orçamentárias (LDO) e o orçamento anual (LOA) devem incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.
“Toda essa legislação é extremamente importante e serve para o gestor que tiver vontade política de exercer o seu papel. Mas observamos que quem exerce o papel de orientação do uso e ocupação do solo é o capital imobiliário. Isso é histórico, é o que se constata na maior parte dos municípios”, complementa Regina. Mesmo reconhecendo essa realidade vigente até então, Regina classifica o momento de hoje de “tragédia”, pelo que ainda pode vir a acontecer.
Contraponto à política de balcão
Alex, por sua vez, diz que a ação planejada sobre o território tem potencial para ser um contraponto à política de balcão, que é pontual, fragmentada, sem continuidade, além de muitas vezes privilegiar grupos mais mobilizados, sem hierarquizar as demandas. “Uma discussão que fazemos muito no IPPUR é que a comunidade menos mobilizada pode estar em situação de maior vulnerabilidade”. O planejamento pode contribuir para superar essas questões e ainda qualificar a ação política do poder público e da sociedade.
O professor da UFRJ cita o exemplo de Duque de Caxias, onde o Plano Diretor foi tomado por movimentos sociais como um instrumento de defesa. A prefeitura estava concedendo uma licença para um grande empreendimento urbano no já adensado centro da cidade, prevendo shopping, escritórios, estacionamento e apart-hotel. “O Plano Diretor foi um instrumento de defesa contra a má prática de gestão pública. Esse projeto é incompatível com as diretrizes que o plano estabelece para aquela região”. O projeto, por enquanto, está parado.
Teoricamente, o gestor público municipal precisa respeitar o documento. Conforme lembra Alex, já houve uma “juridicização” do planejamento urbano. O instrumento passou a ser obrigatório e, como todas as leis, tem uma força vinculante para o gestor público e para a iniciativa privada. “Pode-se buscar o Ministério Público (MP), os órgãos de contas; enfim, todos os órgãos de controle podem se mover em função disso. Conhecemos vários casos em que os planos foram anulados na Justiça por não terem sido feitos conforme o devido processo previsto na lei, por exemplo, sem ouvir a comunidade”, conta ele.
Entretanto, na maior parte dos casos não é isso o que ocorre. Na prática, o Plano Diretor não foi institucionalizado a ponto de exercer o efeito vinculante sobre o planejamento urbano. Além disso, acrescenta o acadêmico, é comum encontrar planos prolixos, que dão carta branca ao prefeito. Ou seja, o que ele fizer, encontrará respaldo no documento. Um exemplo de plano enxuto, para Alex, é o de Paracambi; e de um prolixo é o da capital carioca. “Tem mil prioridades, não amarra, não traz problema para o gestor público”, critica. Exemplo diferente, também comum, vem de Nova Iguaçu que, na opinião de Alex, elaborou um documento razoável, porém acabou engavetado com a mudança do prefeito.
No âmbito da RMRJ, está sendo elaborado o Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, conhecido como Modelar a Metrópole, que envolve seis eixos temáticos, abarcando as questões relativas ao desenvolvimento urbano.
Apesar de o panorama não ajudar, sempre é possível ter experiências positivas em nível local. O momento de revisão dos Planos pode ser uma oportunidade para a população lutar por documentos enxutos e aplicáveis, conforme a realidade de cada município. “Não podemos parar de lutar”, aconselha Regina, que milita pela reforma urbana desde os anos 1960.
Para saber mais, leia o artigo do Ipea “Instrumentos Urbanísticos à Luz dos Planos Diretores: Uma Análise a partir de um circuito completo de Intervenção”.