Bem abaixo da meta, apenas 6% da população pretendida na RMRJ realizou o preventivo em 2020

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Texto por
Luize Sampaio
Data
28 de julho de 2021

No julho das pretas, dados do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS – SIA/SUS mostraram que 19 dos 22 municípios da Região Metropolitana do Rio ainda não contabilizam raça em seus cadastros de coleta de exames ginecológicos. A falta dessas informações é uma realidade mesmo em fichas estratégicas como a do exame preventivo, também conhecido como papanicolau. O procedimento é capaz de prevenir o câncer de colo do útero, uma doença que mata com mais frequência as mulheres negras, segundo a  Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, do Ministério da Saúde, e outros estudos locais ¹. 

Além de não cumprir a exigência de preenchimento de raça, obrigatório por lei, os dados também mostram que a quantidade de exames preventivos realizados no ano passado a rede pública na Região Metropolitana do Rio alcançou apenas 6% da população alvo, que são ⅓  das mulheres entre 25 e 64 anos.  No último ano, 10 dos 22 municípios da Região Metropolitana do Rio alcançaram menos de 10% do público pretendido, são eles: Nilópolis, São João de Meriti, Magé, Belford Roxo, Rio de Janeiro, Cachoeiras de Macacu, Maricá, São Gonçalo, Niterói e Mesquita. A análise produzida pela Casa Fluminense ilustra como essa baixa cobertura já era uma realidade antes mesmo da pandemia.

O exame preventivo é a principal estratégia para detectar o câncer do colo do útero, a quarta principal causa de morte de mulheres por câncer no Brasil e o terceiro tumor maligno mais frequente entre as brasileiras. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), o diagnóstico precoce desse tipo de câncer aumenta as chances de cura em 100%. A especialista em enfermagem obstétrica e professora adjunta do Departamento de Enfermagem Materno-infantil da UERJ, Joana Labrudi, explica a periodicidade correta do procedimento, ela conta também dos desafios de conseguir conscientizar as pessoas sobre a importância do preventivo. 

“O exame faz parte da linha de cuidado da saúde da mulher, então todas nós temos o direito e a necessidade de realizar o preventivo. A recomendação é que se faça dois exames com um intervalo de um ano e após dois resultados negativos para o câncer, podemos realizar o procedimento a cada 3 anos. Esse é o cenário ideal, porém essa não é uma realidade para a maioria. Um grande quantitativo de mulheres ainda não acessam os  serviços básicos de saúde seja por falta de campanhas de conscientização seja pelo pouco tempo que resta para ela se cuidar”, explicou a enfermeira. 

O trabalho dentro e fora de casa são um dos principais motivos que afastam as mulheres do cuidado com a sua saúde. Essa é a realidade apresentada pela  coordenadora do projeto Sim! Eu Sou do Meio, Debora Silva. A assistente social tem organizado uma ação em parceria com Ministério Público Federal para oferecer o exame preventivo de forma gratuita e com um horário flexível para as mulheres de Belford Roxo, um dos quatro municípios da Baixada Fluminense em que menos de 1% das mulheres realizaram o exame na rede pública, em 2019 e 2020. Débora conta sobre o perfil das mulheres atendidas na ação. 

“Chegaram casos de gente que não fazia o exame há mais de 30 anos. As mulheres que atendemos tem um perfil parecido, mais de 80% são negras, mães e trabalhadoras. São muitas as contradições que às vezes impedem essa mulher de se cuidar para cuidar do outro, a saúde dela fica em último lugar e ela vai se deixando. Uma pessoa sai daqui 4h da manhã da Baixada para trabalhar na Zona Sul e chega aqui 10h da noite, que hora ela vai fazer o exame? Voltamos sempre aquela velha pergunta, quem cuida de quem cuida?”, indagou Débora. 

A parceria entre o Sim!Sou do Meio e o MPF vai realizar até o final do ano 24 exames por semana. Especialistas explicam como a desigualdade, o machismo, a falta de um tratamento humanizado e fatores socioeconômicos também são “sintomas” que prejudicam a saúde ginecológica das mulheres.  

“As mulheres estão sempre nos serviços de saúde, mas acompanhando os outros membros da família e não cuidando da própria saúde. Muitas não realizam o exame por vergonha, medo ou pelo desconhecimento da sua importância. O profissional de saúde tem que acolher e orientar para que esse momento não seja de violência e sim uma prática de cuidado. O câncer de colo uterino também está ligado à infecção do HPV, por consequência é uma doença sexualmente transmitida então facilmente evitável. As altas taxas mostram o deserto sanitário que vivemos, onde a ausência do estado nos territórios afasta as mulheres de ter acesso até a procedimentos baratos, razoavelmente simples e de alta eficácia”, resumiu Joana.

Relato pelo instagram do projeto Sim!Eu sou do Meio sobre a demanda pelo atendimento ginecológico em Belford Roxo e parceria com o MPF.

Viviane de Abreu, de 35 anos, foi uma das mulheres atendidas pela ação do projeto Sim! Eu Sou do Meio!. Ela contou que já não realizava o preventivo há mais de 4 anos. Os motivos são a longa espera nos postos públicos que se tornam um entrave ainda maior para aquelas que precisam se dividir entre o trabalho e as muitas tarefas em casa. Essa burocracia para agendamento fez a empreendedora prolongar o tratamento de uma infecção por mais de dois anos.

“Na rede pública demora muito. Você espera horas para marcar, depois pelo menos uns 2 meses para a consulta, mais um mês para sair o resultado e depois outro mês para conseguir voltar na médica. Eu sou a provedora da minha casa e tenho dois filhos pequenos, acabo me esquecendo e me perdendo nesses prazos e filas de espera. E na rede privada não dá, ou come ou faz o exame. Aí você sente uma dorzinha e acaba se auto medicando para lidar com o dia a dia, vai camuflando o problema com remédio”, compartilhou Viviane.

O outro lado dessa mesa também sofre com a precariedade. Debora Silva contou que, mesmo tendo um hospital de referência em saúde da mulher em Belford Roxo, a dificuldade de atendimento se agravou durante a pandemia. 

“A saúde aqui é um caos. Muitas precisam ir para municípios vizinhos para conseguir fazer o pré-natal, por exemplo. O Hospital da Mulher que já funcionava de forma precária agora ficou ainda pior, os servidores estão sem receber há meses. O nosso projeto, inclusive, tem atendido com cesta básica algum desses trabalhadores. É importante ver todo o cenário, porque se de um lado estão as mulheres que não conseguem atendimento, do outro os profissionais estão sem receber e trabalhando com equipamentos antigos e estrutura ruim”, afirmou a assistente social. 

Na cidade do Rio, a mais populosa do estado, a cobertura de exames preventivos na rede pública também é extremamente baixa. Em 2019, apenas 2% dos cariocas realizaram o exame e, no ano passado, o número baixou para 1,1%. A especialista em Saúde da Mulher, Joana Labrudi, conta que as demissões e redução de equipes podem ter contribuído para esses números baixos. 

“Nos últimos anos, equipes inteiras da Saúde da Família estão sendo reduzidas. Uma Clínica da Família que antes funcionava com três equipes agora tem que lidar com a mesma demanda mas com apenas uma equipe. Tem lugares em que uma equipe de 10 profissionais é responsável por atender todo um território. A prefeitura fala que não fechou nenhuma Clínica da Família, mas tem diminuído o número de profissionais e isso limita absurdamente o acesso. E quem tem que lidar com o resultado disso são os profissionais que estão na ponta.”, relatou a enfermeira.

A falta de acolhimento é pior entre mulheres negras

O estudo epidemiológico “Mortalidade por câncer de colo uterino em mulheres negras no Brasil” mostrou  que  o diagnóstico do câncer de colo de útero é feito mais tardiamente em mulheres negras do que em mulheres brancas, diminuindo a chance da paciente vencer a doença. Para a especialista em saúde da mulher negra do Instituto Marielle Franco, Fabiana Pinto, a falta de acesso dessas mulheres ao exame preventivo é um dos motivos que explica esse cenário. Cria de Nilópolis, cidade que no ano passado realizou apenas preventivos em 46 das suas 16 mil mulheres,  Fabiana sabe bem que o acesso a serviços básicos é desigual.

“A falta de acesso ao exame preventivo é um debate sobre viver e morrer. Falando de mulheres negras especificamente, a desigualdade e o racismo institucional estão presentes também na garantia (ou não) da sua saúde. A escassez de dados sobre raça nos atendimentos médicos da rede pública impede que a gente construa políticas públicas mais assertivas para essa população. A gestão pública tem que se responsabilizar pela vida dessas mulheres, com campanhas de conscientização e horários mais flexíveis nos postos de saúde para atender essas trabalhadoras”, explicou Fabiana. 

Invisibilidade trans 

A dificuldade de atendimento para pessoas trans começa já no cadastro. O estudante de relações públicas da UERJ, Rahzel Alec, de 23 anos, conta que encontrou esse problema já no início da sua harmonização na rede pública de saúde de Niterói. A não aceitação do nome social no registro fez com que o estudante procurasse outro ambulatório para fazer seu acompanhamento. 

“Sempre que eu ia até o posto, eles me chamavam pelo meu nome de registro. Era um constrangimento.  Eu tentei explicar e conversar diversas vezes sobre isso até que parei de frequentar aquele espaço. O sistema de saúde é público e um direito de todos,  eles precisam começar a se preparar para acolher toda a população, não só uma parcela dela”, explicou Rahzel. 

Ele falou também da importância do acompanhamento ginecológico e endócrino para as pessoas trans que estão no processo de harmonização. Rahzel alertou que a falta de pesquisas e preparo dos profissionais pode significar um risco para sua saúde. 

“Já está sendo observado que durante o processo de harmonização, o útero tende a atrofiar. Faltam pesquisas para que se entenda mais sobre esse risco, mas não existe movimentação na área da saúde para olhar para esses problemas. Precisamos de mais estudos e acolhimento que nos ajudem a viver com o bem-estar garantido”, afirmou o estudante. 

A Casa Fluminense já vem denunciando a falta de dados públicos sobre a realidade de mulheres trans e homens trans desde a produção do Mapa da Desigualdade. A invisibilidade pode ser medida em diferentes eixos e setores da política pública, da mobilidade à saúde. Em nenhum dos cadastros do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS – SIA/SUS, nem do pedido de LAI solicitado junto a Secretaria de Estado de Saúde é possível identificar a presença de pessoas trans nas fichas de pessoas que realizaram o exame preventivo na região metropolitana do Rio entre 2019 e 2021. 

A coordenadora de informação da Casa Fluminense e especialista em avaliação e planejamento de políticas sociais, Claudia Cruz, mulher negra e bissexual, explica o porquê desse cenário de ausência.

“A população LGBTQIA+ há anos vem denunciando a dificuldade de acesso e atendimento a serviços para sua saúde sexual e reprodutiva. Homens trans,  mulheres trans que já passaram pela cirurgia de redesignação sexual e mulheres lésbicas reforçam a presença de preconceitos e de uma forte ação heteronormativa, o que afasta essa comunidade dos serviços de saúde pública impossibilitando o acesso à cuidados necessários à sua saúde e bem-estar plenos”, afirmou a coordenadora. 

¹ 

Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia – Mortalidade por câncer do colo do útero: características sociodemográficas das mulheres residentes na cidade de Recife, Pernambuco (2008)

IX Jornada Internacional de Políticas Públicas –  Os determinantes sociais para a ocorrência de cancer de colo do utero, prevalencia em mulheres negras da região norte do Brasil (2019)

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Download - Mapa da desigualdade

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