Em janeiro deste ano, o governo estadual repassou para os modais de transporte público cerca de 22 milhões de reais em subsídios do bilhete único, um valor que antes da pandemia correspondia a uma média mensal comum. Porém desde março, com o começo do isolamento social, essa quantia vem diminuindo significamente e, em abril, o repasse foi de cerca de 2 milhões de reais. Essa diferença de quase 20 milhões tem a ver com a redução no número de passageiros. Os dados financeiros, que fazem parte de um levantamento feito pela Casa Fluminense, mostram que o novo cenário mexeu com as contas das empresas que recorreram ao estado em busca de uma saída para essa crise.
A primeira tentativa do governador Wilson Witzel foi propor, no início de maio, o Projeto de Lei nº 2.501/2020 que tinha como objetivo a criação de um auxílio financeiro emergencial para empresas de transporte do Rio de Janeiro se manterem durante a pandemia. No entanto, no dia de votação na Alerj, o governo recuou e disse que irá reformular o texto do projeto para explicitar que o dinheiro do auxílio não virá do bolso do executivo. Até então nenhuma outra proposta foi feita e o governador tem concentrado suas ações em tentar se manter no cargo. Segundo a analista do Programa de Mobilidade Urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Kelly Fernandes, a atual crise no sistema de transporte público está muito conectada com um momento anterior, a formulação dos contratos de concessão.
“As cidades brasileiras não têm contratos que estejam preparados para lidar com eventuais crises. O Idec analisou em parceria com o ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento) e o IEMA (Instituto de Energia e Meio Ambiente) editais de licitação das 12 capitais mais populosas do país, entre elas o Rio de Janeiro. Nenhum dos contratos apresentam cláusulas que permitam o poder público renegociar os termos perante a cenários de crise”, afirmou a analista.
A pesquisadora aponta também que se não houver a destinação de recurso públicos para o financiamento do sistema quem pagará a conta da crise desencadeada pela Covid-19 serão os usuários. O Mapa da Desigualdade mostrou que parte da população da Região Metropolitana do Rio já gasta ⅓ da sua renda com passagem, entre as populações mais afetadas estão os cariocas, caxienses e iguaçuanos.
Esse levantamento foi feito a partir do contato direto com cada uma das prefeituras ou secretarias responsáveis, já que atualmente esse dados não estão reunidos em nenhum portal do estado.
Um passo atrás: editais, licitações e contratos. O que isso tem a ver com a pandemia?
As licitações são definidas nas orientações do Senado Federal como movimento da administração pública de procurar empresas privadas para oferecer ao estado bens e serviços. No sistema de transporte essa convocação acontece através de editais em que as empresas interessadas concorrem pela concessão do governo estadual e municipal para operar um dos tipos de modal. O processo de concessão é uma das alternativas de gestão do transporte público. No edital são definidas as normas e diretrizes que as empresas precisam seguir, um dos pontos mais polêmicos entre as cláusulas é o tempo vigente desses convênios.
O levantamento realizado pelo Idec mostra que os contratos no país estabelecem longos tempos de concessão para as empresas o que, segundo o instituto, dificulta que os processos de mudanças na qualidade do setor sejam feitas, para se adaptarem por exemplo ao cenário de pandemia. Outro problema desses tempos longos de contratos é na questão da concorrência, o acesso ao mercado de transporte fica restrito às empresas que já estão no comando.
Na Região Metropolitana do Rio, os modelos do sistema de ônibus são variáveis. Há municípios que operam por concessão, mas também há outros em que não há regras de permissão definida e por fim, existe o caso de Tanguá, que segundo o Mapa da Desigualdade, não possui linha de ônibus municipais. A capital carioca recebeu a sua primeira licitação pública de linhas de ônibus em 2010, mas o desdobramento desse processo não foi positivo. Os resultados foram: os constantes entraves no prazo para as empresas de ônibus modernizarem as suas frotas, uma investigação do sobre o esquema de fraude nas licitações e a CPI dos ônibus na Câmara Municipal.
“A questão dos prazos desses documentos é um fator de entrave em meio a crise do coronavírus. A exemplo da concessão de ônibus dada no município do Rio, que foi de mais de 20 anos, tempo que ainda pode ser estendido em mais 20. Agora temos uma pandemia e contratos longuíssimos, como a gente pode rever esses documentos e propor mudanças para o futuro sendo que lá atrás se firmaram esses prazos?” questionou Kelly, analista do Idec.
Entre as alternativas legais para propor mudança nas concessões do setor de transporte estão: a criação de termos aditivos nos contratos e os decretos de níveis municipais e estaduais. As duas opções são mecanismos usados para complementar uma legislação já implementada. As prefeituras que quiserem alterar algumas questões do contrato, excluindo mudanças de empresa responsável e prazo da concessão, podem usar essas ferramentas legais em paralelo ao contrato vigente. Esse panorama foi apontado pela coordenadora de transporte público do ITDP, Beatriz Rodrigues, que reforçou a necessidade de mudanças e revisão desses contratos.
“Precisam ser inseridos novos parâmetros nessas concessões que resultem em sistemas mais eficientes, limpos e inclusivos. Os contratos não podem ser mais um obstáculo nesse processo, eles precisam na verdade incentivar isso. De uma maneira geral, os acordos de concessão não apresentam tantos incentivos a um sistema que seja de maior qualidade para o usuário com eficiência, sustentabilidade e resiliência. Diversos aspectos precisam ser revistos para que se inclua incentivos financeiros, técnicos e ambientais capazes de facilitar e contribuir para a melhoria do sistema” explicou Beatriz.
Os males da privatização
A tendência de esvaziamento do poder público enquanto agente e prestador do serviço vem se fortalecendo nas últimas décadas em diferentes setores, o caso mais recente em discussão é o da Cedae. Quando o estado abre mão de operacionalizar um serviço que deve ser de acesso geral da população, por ser um direito social constitucional, como é o caso da água e do transporte, ele está colocando esse direito dentro de uma lógica de mercado. Segundo a analista do Idec, a partir do momento que o poder público concede a operação do sistema está admitindo que o serviço de transporte público vai ser um gerador de lucro para alguém, um terceiro que não tem como prioridade a satisfação dos passageiros.
“As empresas fazem de tudo para ter mais taxas internas de retorno, a famosas TIR, que são determinadas nos contratos. O lucro das empresas está descrito neste documento, o serviço ser rentável é o que vai fazer as empresas terem interesse ou não pela operação do sistema. É uma cultura de privatização e quando o governo faz isso coloca esses serviços dentro de uma lógica em que a busca é por mais lucro e não por qualidade ou acessibilidade do serviço”, explicou Kelly.
Para a especialista esses processos de concessões afastaram o poder público do sistema de transporte e uma das consequências mais graves que isso gerou foi na questão do acesso aos dados de custo e receita das operações. Atualmente esses valores não são públicos para população e, em alguns casos, nem para para o poder público.
“Muitas vezes o executivo fica sem saber de fato quanto custa o sistema, não tem o domínio sobre esse valor e mais, o porquê de ser aquele preço. O poder público é refém da planilha que as empresas de transporte oferecem então, se ela falar que o pneu custa ‘X reais’ é isso que vai ser colocado como o valor e pronto”, explicou a analista do Idec.
Como mudar esse cenário?
As mudanças para esse cenários só são possíveis se o estado passar a ter um papel mais ativo nesse processo. Kelly contou que é comum, quando o governo autoriza essas concessões, achar que os problemas daquele serviço deixaram de ser responsabilidade do estado quando na verdade o que acontece numa concessão é que o poder público passa a ter um outro papel. O governo vira um agente de fiscalização, entre as ações que precisam ser feitas pelo estado nesse cenário estão:
- A criação de centros de controle operacionais
Esses espaços vão ajudar a dar o panorama de quantos ônibus estão em circulação na cidade, taxa de ocupação desses veículos, tempo de deslocamento entre outros dados estratégicos tanto para fiscalização quanto para as próximas licitações.
- A análise e fiscalização dos índices usados para modular a receita e custo da operação
A transparência de dados sobre bilhetagem e arrecadação tarifária entram nesse monitoramento. Ano passado, após pressão da Casa e outros organizações da sociedade civil, a Alerj aprovou a PL do bilhete único que tira o controle da gestão das mãos da Fetranspor e vai abrir semestralmente os dados sobre a operação.
- Metas sustentáveis estabelecidas nos contratos
Entre as principais ações estão a diminuição da emissão de gases poluentes e a eletrificação das frotas
- Realização de pesquisas qualitativas
Ter um canal aberto com os passageiros a partir da criação de serviços de atendimento para a população fazer denúncias e tirar dúvidas
- Adotar procedimentos para combater violências de gênero e raça
O Mapa da Desigualdade traz dados que comprovam invisibilidade dessas questões. É preciso que sejam construídos protocolos operacionais para lidar com essas situações com investimento na formação dos profissionais além da produção de registros do casos.
Focar na fiscalização da qualidade do serviço precisa ser uma das prioridades principalmente agora em meio a pandemia em que pontos sobre a qualidade do serviço se tornaram também questão de saúde pública, como por exemplo as superlotações. “A gente não pode mais admitir uma concentração tão grande de 6 ou 8 passageiros por metro quadrado como se admita antes, em nenhum modal”, concluiu Kelly.
Outro fator preocupante no quesito qualidade do transporte é que com os pedidos de socorro e crise política e econômica do Rio, a analista de mobilidade acredita que as empresas de ônibus podem usar o cenário para tentar renegociar os prazos de melhorias no sistema, o que a longo prazo pode significar um retrocesso no serviço. A qualidade do serviço já vem afetando os passageiros. Isto porque o transporte tem o que especialistas chamam de demanda cativa. Parte da população, em geral as pessoas mais empobrecidas, necessitam deste serviço e não tem outra alternativa de deslocamento a não ser o transporte coletivo. Assim, mesmo com o serviço ruim, este grupo permanece utilizando o sistema.
Além disso, outra falha dos contratos de licitação das cidades brasileiras preocupa: a falta de pautas propositivas em relação a questões de gênero e raça. Ao analisar os documentos das principais capitais brasileiras, a pesquisa apontou também que pouquíssimos apresentavam ferramentas de combate à violência e assédio, cláusulas sobre treinamento de motoristas ou então políticas de cotas afirmativas na contratação de pessoal.
“Quando a gente planeja um contrato é essencial que se considere principalmente a vida da população mais vulnerável em termos de mobilidade que são os pobres, os negros, as mulheres, idosos e as crianças. Isso tem que ser levado em consideração sempre e em todo o contrato. Além disso, é necessário que metas mais progressivas de paridade de gênero e raça sejam estejam na pauta da composição das empresas”, completou Beatriz.
Essa é a segunda da série de reportagens sobre transporte. Na próxima será sobre planejamento. Acompanhe!
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