* Por Clarisse Linke e Letícia Bortolon
Assédio sexual e violência são muros invisíveis que impedem o acesso pleno das mulheres às oportunidades de trabalho, lazer e serviços disponíveis na cidade. Embora seus efeitos tenham materialidade, os formuladores de políticas urbanas preferem ignorar que a mobilidade não é neutra quanto ao gênero.
Nos parece bastante claro, a esta altura, que os padrões de deslocamento diferem para homens e mulheres, o que contribui para deixá-las ainda mais vulneráveis no ambiente urbano. Sabemos que as mulheres não fazem apenas o deslocamento pendular casa-trabalho. Elas são responsáveis por levar e buscar crianças na escola, acumulam funções de cuidado com idosos e crianças, cuidam das compras e, com tudo isso, acabam precisando percorrer distâncias maiores. No Brasil e no mundo todo, especialistas estão voltando o olhar para a questão, mas registrar essas discrepâncias não é suficiente. É urgente “furar a bolha” e descobrir como, na prática, influenciar a construção de políticas públicas mais congruentes com a realidade de 50% da população, e ir além: entender como gênero, raça, idade acumulam particularidades e fazem da mobilidade uma experiência ainda mais complexa. Para isso, é fundamental sensibilizar as gestões municipais e as coalizões metropolitanas.
De acordo com a pesquisa “Linha de Base”, da Action Aid, 86% das brasileiras já foram assediadas em espaços públicos e 44% no transporte público. Para o estudo “O Acesso de Mulheres e Crianças à cidade”, fomos à região metropolitana do Recife e ouvimos dezenas de moradoras em grupos de discussão sobre mobilidade e gênero. Uma das conclusões mais aterradoras a que chegamos é que as mulheres percebem o assédio como parte constituinte da experiência da vida na cidade. Além disso, a correspondência entre salário e custos de transporte pesa mais para quem mora mais longe, e o processo de periferização das cidades brasileiras relegou as maiores distâncias à população de baixa renda. Tudo isto faz estas mulheres reféns de uma lógica opressora, que torna o cotidiano mais duro e a vida, em última análise, mais pesada.
Com a escalada da violência no Rio, em especial nos municípios da Baixada Fluminense, precisamos pautar, com absoluta seriedade, o debate sobre a mobilidade das mulheres. E os candidatos e as candidatas que pretendem chegar ao legislativo estadual devem estar dispostos a discutir o Rio por Inteiro, reconhecendo com honestidade e clareza que um esforço concreto neste sentido será necessário. Além da adoção de diretrizes amplas que sinalizam a necessidade de se “considerar questões de gênero”, é fundamental que governos produzam dados sobre padrões de mobilidade desagregados por gênero, raça e renda, e adotem indicadores capazes de mensurar o impacto das políticas sobre a equidade de gênero no acesso à cidade.
Construir um diálogo contínuo entre as municipalidades que compõem a região metropolitana é fundamental, e, neste caminho, quanto mais diversos territorialmente e comprometidos com a questão forem os deputados e deputadas eleitos, tanto melhor. Mulheres moradoras de territórios populares têm pressa — e precisam atravessar o muro.
* Clarisse Cunha Linke e Letícia Bortolon, respectivamente Diretora-Executiva e Coordenadora de Políticas Públicas do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil)