Era uma tarde quente de agosto, e Waldino Crispim dos Anjos assistia impassível enquanto um caminhão descarregava três toneladas de lixo no seu terreno. Sentado em uma cadeira preta estofada, Waldino não se levantou para apertar a mão do motorista. Ao fazê-lo, agradeceu a ajuda ao lhe dar quatro notas de 50 reais dobradas. As pernas da cadeira se afundaram no lixo que serve como pavimento ao terreno quando ele se inclinou para o aperto de mão, mas Waldino não se desequilibrou. Está acostumado, ali é seu escritório, debaixo de uma lona estampada com a propaganda de uma loja infantil, na beira do terreno do lixão que ele chama de “meu”.
A poucos quilômetros dali, Rosinete dos Santos organizava material reciclado junto com a equipe das quatro cooperativas de catadores responsáveis pelos dois galpões do Polo de Reciclagem de Jardim Gramacho. Seu escritório, dentro do galpão, é mais confortável que o de Waldino. Há mesas, cadeiras, armários, sem contar o refeitório e o vestiário, à disposição dos trabalhadores. Contudo, os caminhões são menos frequentes por ali do que no terreno de Waldino.
Ele tem um lixão clandestino de grande rotatividade. Ela tenta dar vida ao sonhado polo de reciclagem dos catadores de Gramacho. Ele e seus funcionários ganham quase tanto quanto na época em que trabalhavam no que foi o maior lixão da América Latina, o Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, na Baixada Flumeinse. Ela admite que o salário ali nem chega a ser salário. São 300 reais por mês para cada cooperado. “Não dá para sustentar uma família”, diz Rosinete, lembrando que a maioria dos cooperados tem outras fontes de renda.
Passaram-se três anos desde o fechamento do lixão de Gramacho, onde cerca de 1,6 mil pessoas trabalhavam como catadores de material reciclado. Hoje, Waldino calcula que 50 pessoas trabalhem regularmente nas dezenas de pequenos lixões clandestinos como o seu, amontoados pelos sub-bairros da Chatuba e do Jardim Planetário, os mais pobres de Jardim Gramacho. Fora as centenas que fazem bico ali para complementar a renda, diz. Já Rosinete conta uns 70 que trabalham nas cooperativas de catadores da região – um número menor, de cerca de 40, trabalha no Polo em si.
O pequeno lixão de Waldino sofre por falta de regularização e salubridade no ambiente de trabalho. O polo de reciclagem de Rosinete amarga a falta de parceiros que enviem material reciclado para lá – os galpões têm capacidade para processar 600 toneladas de material reciclado por mês, mas o polo só recebe 40.
Numa coisa, os dois concordam: “A realidade de Jardim Gramacho poderia ser muito melhor”, diz Waldino.
Promessas e soluções
Em 2012, quando o Aterro de Gramacho foi fechado, os planos de uma vida melhor para os catadores e políticas públicas mais respeitosas ao meio ambiente ocupavam páginas e páginas dos jornais. “A partir de agora o Rio não vai mais admitir as violências contra o meio ambiente como foi esse crime ambiental por mais de 30 anos aqui em Gramacho”, comemorou o prefeito Eduardo Paes no dia do fechamento.
Mas enquanto o prefeito dava sinais ao mundo que levava a sério seu desejo por uma cidade ambientalmente correta, com o fechamento do aterro de Gramacho, os planos para uma coleta seletiva eficiente e ampla caminhavam a passos lentos. A cidade do Rio de Janeiro gera hoje cerca de 10 mil toneladas de lixo por dia – ou 300 mil toneladas por mês. A coleta seletiva, no entanto, recolhe apenas 1,7 mil toneladas mensais.
A Comlurb não destina nenhuma parte deste montante ao polo de reciclagem de Gramacho. Os catadores fazem suas próprias articulações com empresas e outras cooperativas para conseguir o material processado.
Já Duque de Caxias ainda está às voltas com seus planos de coleta seletiva. O atual secretário municipal de Meio Ambiente, Luiz Vergara, quer implantar um projeto piloto no bairro de Vila São Luiz, próximo a Gramacho, ainda este ano. Os recursos para o investimento sairiam de um Termo de Ajuste de Conduta de R$ 10,8 milhões com a Gás Verde, empresa responsável pela exploração do gás metano produzido no antigo aterro.
Vergara espera que, ao fim de 12 meses, a prefeitura do município esteja recolhendo 315 toneladas por mês ali. O montante seria suficiente para suprir apenas metade do material necessário para que o polo de reciclagem de Rosinete trabalhe em capacidade plena. Mas tudo ainda é promessa.
“As pessoas que vivem de coleta seletiva hoje passam fome”, critica Tião Santos, presidente da Associação dos Catadores do Aterro Metropolitano do Jardim Gramacho (ACAMJ). “O que a gente coleta hoje é muito pouco para atender à demanda salarial que as pessoas precisam ter. E está muito abaixo de atender à demanda da quantidade de catadores desempregados”, diz.
Tião se diz cansado de “tomar café, comer um biscoito e ficar ouvindo conversa fiada”. Questionado sobre os planos da atual administração municipal de Duque de Caxias, ele suspira, conta prefeitos, promessas e diz que só está interessado em ação. Hoje, o catador mais famoso de Gramacho é uma figura controversa entre os catadores e ex-catadores de Gramacho. Muitos o culpam pela falta de resultados de uma luta de tantos anos, que recebeu tanta atenção nacional e internacional.
“Eu sou mais cobrado do que governador aqui”, ele disse em uma entrevista por telefone. Tião diz que entende a frustração de quem o cobra, por mais que não seja um representante do poder público, como muitos acreditam, diz. “Primeiro, eu achei injusto, mas depois você entende o porquê. As pessoas não têm com quem reclamar.”
Uma promessa de fato foi cumprida: os trabalhadores cadastrados à época pela ACAMJ receberam uma indenização de R$ 13.980 cada um. Mas pouco da assistência prometida foi de fato entregue. O polo de reciclagem e a urbanização do bairro, os dois pontos mais importantes para a comunidade de Gramacho, ainda patinam.
O Termo de Ajuste de Conduta da Refinaria de Duque de Caxias
Muito se falou do Termo de Ajuste de Conduta da Refinaria de Duque de Caxias, um documento que traria um bilhão de reais em compensações para os governos por causa de problemas ambientais na empresa e ajudaria na revitalização de Gramacho. No fim das contas, de toda o valor, apenas três milhões e meio restaram para Gramacho.
Foi assim que o polo de reciclagem foi construído. No entanto, o plano de dez prédios que empregaria 550 catadores, segundo as promessas da época, concretizou-se na forma de um complexo de dois edifícios que mal emprega um décimo deste número.
A revitalização do bairro ainda está no papel, mas Vergara tem ambições. Gastou 1,7 milhão de reais para finalizar um projeto de urbanização para o bairro, que inclui um conjunto habitacional do Minha Casa, Minha Vida. As planilhas, plantas e uma apresentação em vídeo foram enviadas para o Ministério das Cidades, e Vergara acredita que o plano pode fazer parte de um hoje longínquo Programa de Aceleração do Crescimento 3, apesar da crise econômica e do ajuste fiscal. “Nós acreditamos que no final do ano, nós teremos uma resposta”, diz, citando a boa relação do prefeito Alexandre Cardoso com a presidenta Dilma Rousseff.
O investimento para tirar as promessas do papel é de 150 milhões de reais para a urbanização do bairro, mais 90 milhões para um conjunto habitacional de seis mil unidades. Questionada sobre o encaminhamento dos planos de Caxias, a assessoria de imprensa do Ministério limitou-se a admitir uma reunião, “em caráter informal”, com representantes da prefeitura.
Enquanto isso, Vergara tem tomado medidas paliativas, como varrição de ruas e conserto de asfalto. Ele tenta mostrar serviço, mas acredita que apenas uma solução completa dá jeito na situação “sub-humana” com que muitos vivem em Gramacho. Para ele, o problema tem três eixos: segurança pública, meio ambiente e questão social. “Se você não atacar isso de forma unificada, o problema vai continuar”, diz.
Em agosto, reportagem do jornal O Globo revelou que traficantes controlavam cinco lixões em Gramacho, cobrando valores irrisórios para despejo de toneladas de lixo na região. Apesar de Vergara considerar o problema sério, os moradores entrevistados pela reportagem dizem que tudo não passa de engodo para justificar a ausência do poder público no bairro. “Isso é desculpa do poder público”, disse um catador conhecido como Nilsinho. “É uma covardia”, completou.
De fato, a reportagem do Fórum Rio não encontrou traficantes cobrando pela entrada de caminhões de lixo no bairro – e sim um dono de lixão pagando um motorista para que ele despejasse o lixo em seu terreno.
Dependência de doações e venda irregular de lixo
Ao pensarem que quase 90% dos resíduos coletados na cidade do Rio de Janeiro são hoje aterrados em Seropédica sem que ninguém tenha a chance de separar as riquezas recicláveis, os catadores se revoltam. Fosse possível, iriam para lá em um pulo. Afinal, hoje os catadores dependem da doação – ou da venda irregular – de resíduos por organizações públicas e privadas.
Além disso, o aterro era como uma loteria para muita gente. Ali, eles podiam encontrar o que chama de “podrão”, objetos que foram para o lixo, mas ainda podem ser utilizados. São roupas, brinquedos, livros, caixas de sabão em pó e até mesmo pedaços de carne embalados. No lixão de Waldino, quase dez pessoas se reuniram em volta do caminhão de lixo para disputar um “podrão”. Um senhor saiu de lá gritando que faria um churrasco com um pedaço de carne encontrado na hora.
Faz um ano que Waldino comprou seu pedaço de terra por dois mil reais na Chatuba, sub-bairro de Jardim Gramacho, à beira do mangue, tradicional reduto de catadores. De lá se vê claramente a montanha de 60 metros, boa parte do lixo produzido na cidade do Rio de Janeiro durante as últimas quatro décadas. Dois anos depois de o aterro ser declarado fechado, Waldino inaugurou a pequena empresa que lhe rende cerca de quatro mil reais por mês – valor próximo à quantia recebida nos tempos do aterro.
Não era este o sonho de Waldino. Ele queria ter montado um negócio regular, de beneficiamento de material reciclado. Mas, na época em que recebeu sua indenização, não recebeu orientação e acabou comprando um carro, que lhe foi tomado pela polícia na primeira fiscalização – a compra fora informal, e o carro não estava no nome de Waldino, que nunca mais conseguiu recuperá-lo. Histórias assim são comuns em Gramacho. Houve, entretanto, quem tenha usado o dinheiro da indenização para comprar uma casa para alugar ou construir um negócio.
“Ninguém teve braço e perna para discutir plano de negócio com ninguém”, reclama Valéria Bastos, professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social na PUC-RJ. Valéria é uma das maiores conhecedoras da realidade de Gramacho: foi a primeira assistente social a trabalhar no aterro, em 1996. Ela lamenta que os planos que ela ajudou a coordenar durante tantos anos não tenham sido levados a frente.
A ideia era que os catadores recebessem assistência para estabelecer a forma como desembolsariam o dinheiro da indenização. “O dinheiro é muito volátil. Na mesma velocidade que ele chega, ele vai embora”, diz, fazendo referência à falta de organização financeira entre os catadores. Ali, ganha-se por dia, não por mês.
Valéria tem dificuldade de elencar os pontos positivos do fechamento de Gramacho. Sem o aterro, Gramacho é mais um bolsão de miséria na Baixada Fluminense. A solução, para ela, seria valorizar os catadores – afinal o trabalho deles não precisa ser degradante e insalubre como era no aterro.
“É fazer o que foi proposto: dar continuidade e acompanhamento para estruturar aquele polo (de reciclagem) a ponto de ele ser, no futuro, auto-gestionado. A proposta é essa”, explica. O acompanhamento é essencial. “Não dá para pegar um catador e pensar que daqui a seis meses ele virou um empresário”, diz.
A revitalização do bairro é outro ponto importante para Valéria. O abandono é flagrante. Nas ruas, crianças correm descalças por ruas pavimentadas de lixo. A história de Waldino, que diz ter começado a catar material reciclado aos 12, e de tantos outros catadores, parece se repetir.
Enquanto o ForumRio.org esteve no lixão clandestino, um menino com seus 12 anos observava os adultos conversarem deitado no lixo. No seu peito, havia marcas de micose. Só se mexia para espantar as centenas de moscas que nos rodeavam. Ele usava sandálias de borracha pretas, com meias brancas até os joelhos. Levantou-se apenas quando ouviu o barulho de um caminhão entrando no terreno. Ficou animado.
Parou atrás do caminhão a fitá-lo, ansioso. Um dos adultos abriu a porta – apenas o bastante para o chorume jorrar, amarelo e leitoso, aos seus pés. De repente, não estava mais só. Havia nove pessoas ao seu redor.
Quando a porta do caminhão é escancarada, três toneladas de lixo caem no chão, despedaçadas como um bolo podre. Com pouca proteção, todos se põem a catar. Mulheres, homens, crianças, idosos. E o menino de 12 anos.
Procurados, o Instituto estadual do Ambiente e a Secretaria estadual do Ambiente, não responderam a nenhum dos questionamentos feitos pela reportagem.