O leilão da Cedae ocorreu em meio a uma disputa entre a Alerj e o governo do estado do Rio de Janeiro. Nos dias 29 e 30 de abril, as duas instituições foram protagonistas de uma queda de braço que teve como um dos trunfos o Conselho Consultivo da Região Metropolitana do Rio. Criado em 2018, este órgão surgiu como uma forma de aumentar a participação social nas decisões do estado. A Casa Fluminense foi eleita presidente do conselho em 2019. Meses depois, no entanto, o então governador Wilson Witzel expulsou a instituição e mais de 18 representantes da sociedade civil do conselho. Este esvaziamento do órgão metropolitano, o Regime de Recuperação Fiscal, as decisões do Supremo e a ideologia política em alta foram os principais elementos dentro da disputa que privatizou a última das estatais fluminenses. Entenda os passos que antecederam essa venda.
O trunfo metropolitano
Um dia antes do leilão que vendeu a concessão dos serviços de água e esgoto de 29 municípios do estado do Rio, a Assembleia Legislativa aprovou o decreto PDL 57/2021 que proibia a realização da venda. Mas, a norma foi suspensa no dia seguinte (30/04) pelo Tribunal de Justiça do Rio e um novo decreto estadual foi publicado no Diário Oficial para que o leilão prosseguisse. A tentativa da Alerj de evitar o leilão esbarrou em uma questão técnica, juridicamente, o assunto não seria de competência dos deputados, visto que a concessão da Cedae se limita apenas à Região Metropolitana do Rio de Janeiro e seus 22 municípios. Caberia então aos prefeitos dos municípios e ao Conselho Consultivo da Região Metropolitana do Rio evitar esse processo. Conselho este que passou por um desmonte ainda durante o mandato de Witzel. Para a educadora popular da Fase RJ, Caroline Rodrigues, que foi uma das integrantes depostas do conselho, esse ciclo de ações parece ter sido friamente calculado.
“É muito simbólico que a cartada final para a privatização da Cedae tenha sido o argumento de ‘assunto metropolitano’, sendo que este mesmo governo fez questão de esvaziar o órgão e impedir a participação popular nesse debate. Na hora que foi de interesse do governo, o conselho e a discussão metropolitana voltaram a ser chave mas foram anos de luta da sociedade civil antes disso”, lamenta a pesquisadora em saneamento.
A história de criação deste conselho consultivo traça um paralelo importante com as últimas eleições presidenciais. Enquanto ocorria o processo eleitoral que terminou com a posse de Jair Bolsonaro em Brasília e de Wilson Witzel e Claudio Castro no Rio, ocorria também a eleição dos membros do conselho e, posteriormente, a regulamentação do órgão a partir da aprovação da lei complementar 184/2018 na Alerj. Este foi um momento chave para a garantia que o processo de privatização acontecesse, basta ver a foto do dia do leilão.
Os principais passos do processo de privatização ocorreram durante a pandemia, o que dificultou a participação popular nesta decisão que impactará na vida de toda população por pelo menos 35 anos. Essa foi uma das críticas apresentadas pelo engenheiro sanitarista, professor e pesquisador da Fiocruz, Alexandre Pessoa. Ele afirma que o estado tem uma dívida histórica com o saneamento e que a falta de um olhar atento ao setor foi um dos motivos para a crise de qualidade que o serviço sofreu.
“A venda da Cedae seguiu uma lógica neoliberal que tem regido o país, as grandes corporações que entram no setor com objetivo apenas de maximizar seus lucros. Os documentos do edital não foram elaborados na perspectiva do direito humano à água e ao esgotamento sanitário. A Cedae sofreu um processo de sucateamento. A companhia tem uma capacidade técnica importante mas ao longo dos anos foi perdendo a qualidade dos seus serviços, isso é uma decisão política e econômica. Essa lógica é preocupante, exatamente esses governos que deixaram a Cedae de lado são quem em seguida propõem a privatização” alertou o especialista.
Caroline Rodrigues, acompanha há anos o tema do saneamento no Rio e escreveu em seu artigo “As águas do Brasil na mão do cassino financeiro” , que a questão da privatização da água no estado fluminense remete às alianças anteriores a Bolsonaro e Witzel. Os primeiros acordos foram feitos entre os ex-governantes Michel Temer e Luiz Fernando Pezão. Juntos, eles conseguiram aprovar na Alerj, em 2017, a Lei n°. 7.529 que colocava títulos financeiros da Cedae como garantia para um empréstimo federal que em tese tiraria o estado da crise econômica, o Regime de Recuperação Fiscal foi então iniciado.
Outra peça importante nesse processo foram as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Acionado pelo governo do estado em abril deste ano quando o Tribunal de Justiça do Rio tentou frear o leilão acatando um pedido dos trabalhadores da Cedae — há um risco de que 4 mil deles fiquem desempregados com a privatização, o STF manteve o curso da venda alegando que havia risco ao interesse público. Outro ponto importante é que, em 2020, 15 dos 22 prefeitos das cidades metropolitanas votaram a favor do modelo de concessão. Apenas a capital carioca e São Gonçalo foram contrários ao edital de concessão, confira a lista completa.
O que muda com a privatização e as lacunas do processo
No processo de venda, os serviços prestados pela Cedae foram divididos em quatro blocos. Durante o leilão, o bloco 3, que abrange 22 bairros da Zona Oeste do Rio mais 6 municípios, foi o único que não foi vendido. Mesmo sendo a região mais barata do leilão, os moradores da área vão ficar na expectativa dos próximos passos. O objetivo do governo é conseguir vender esse bloco até o final deste ano, por enquanto o serviço de abastecimento de água na área está garantido até pelo menos junho pela Cedae.
A família da contadora Paloma Neves mora em Campo Grande há mais de 50 anos. Ela conta que sempre sofreu com o serviço prestado pela Cedae principalmente com a falta de tratamento de esgoto. Paloma se mudou recentemente para Santa Cruz, outro bairro da Zona Oeste, e os problemas com a água permanecem, ela contou que todos da rua precisam usar bomba para ter acesso ao serviço. Paloma teme que os bairros caiam no esquecimento com a privatização.
“A zona oeste é uma das áreas mais pobres do Rio, eu acredito que por isso que as empresas não ficaram interessadas. A gente tem muito problema de ligação de cano ilegal e falta de estrutura nas favelas, acho que esse pode ser o argumento usado pelas empresas mas isso é injusto com os consumidores. Corremos o risco de ficarmos ainda mais abandonados e nenhum morador deveria ser prejudicado nesse processo’, afirmou a moradora.
O processo de concessão pode ser ainda mais decisivo na Baixada Fluminense. A região que historicamente já sofre com a falta de abastecimento e qualidade da água pode enfrentar ainda mais retrocessos. Um primeiro impacto direto aparece no edital de concessão, onde as favelas e periferias que serão contempladas com o serviço são apenas aquelas classificadas como regulares e seguras. Para o pesquisador da Fiocruz, isso significa que as empresas não têm responsabilidade de fornecer serviço nas áreas mais vulneráveis.
“A proposta do edital diz que serão priorizadas áreas ditas seguras, isso já é uma violação ao direito à água. As favelas não podem ser territórios de exceção de direitos, precisam de segurança pública e também de saneamento. Quem faz obra de urbanização é o setor público. A empresa vai basicamente colocar as redes de distribuição de água e coletora de esgoto, mas não garante a ligação até as casas. Esse é um problema que possivelmente vai gerar muito ruído já que o edital não esclarece como vai concatenar os planos municipais de saneamento básico com os planos de ação do setor privado”, explicou Alexandre.
A auxiliar de produção de reciclagem, Camila Farias, é moradora do Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, uma das regiões que deve ser afetada com a privatização. Ela conta que tem bairros na cidade que estão sem água há mais de um ano.
“A qualidade da água já não é das melhores, isso quando ela ainda chega. A situação piorou muito nos últimos tempos, esse é um dos direitos que nos é negado por aqui, sei que a nossa comunidade não vai ser beneficiada com a privatização, esse tipo de venda só beneficia o governo”, contou Camila.
Outro ponto preocupante é que o contrato de concessão tira da Cedae sua fonte de recursos, sem a capacidade de arrecadar dinheiro, não se sabe como a ex-estatal vai conseguir manter seus funcionários e pagar obras estratégicas para a metrópole do Rio. Entre as melhorias que estavam sendo feitas está a nova Estação de Tratamento Novo Guandu, que faz parte do programa Mais Água para a Baixada Fluminense e tinha como objetivo solucionar os problemas de abastecimento da região. Todos esses questionamentos foram feitos pela Campanha Água para Todos durante o processo que antecedeu a privatização, mas nenhuma resposta foi dada nem nas audiências públicas nem no próprio documento de concessão.
Água para todos
Depois da debandada obrigatória, em 2019, o grupo dos expulsos do Conselho Consultivo da RMRJ se reuniu e ajudou a fundar a Campanha Água para todos. A mobilização foi iniciada pelo Sindágua-RJ e membros da sociedade civil como a Casa Fluminense, FASE, Movimento Baía Vida, ONDAS, entre outros. O objetivo da campanha é lutar contra a mercantilização da água e do saneamento e pelo seu reconhecimento como um direito humano e bem comum. O coordenador geral da Casa Fluminense, Henrique Silveira, acredita que a privatização não vai resolver a questão da universalização do serviço de saneamento, afirmando também que a luta do movimento ainda não acabou.
“Esse é um setor de interesse público que não deveria estar vinculado à lógica do lucro porque muitas vezes esse tipo de operação será sim deficitária em alguns territórios. Acreditamos que um operador público, como a Cedae, deveria estar na frente, uma empresa pública que inclusive gerou um lucro de 1 bilhão de reais em 2019. O que a gente deveria estar discutindo é como aperfeiçoamos a Cedae, dando mais transparência e eficiência para que ela chegue em todos os cantos do Rio. Cabe agora, dentro do contexto do leilão, a sociedade civil seguir acompanhando e vendo juridicamente como esse processo pode ser refeito já que houveram uma série de fragilidades e inseguranças jurídicas durante todo o processo”, resumiu Silveira.