Por Fernando Sousa* e Gabriel Barbosa**
A primeira constatação a ser feita é: entramos na corrida pela disputa dos cargos do legislativo e executivo municipais em meio ao recrudescimento violento de casos de intolerância religiosa contra os praticantes da umbanda e do candomblé. E isso acontece tanto na metrópole do Rio de Janeiro quanto em outras partes do país. Os casos mais recentes nos remetem a um histórico amplo de práticas discriminatórias. O Centro de Promoção da Liberdade Religiosa & Direitos Humanos (CEPLIR), ligado à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, recebeu, em dois anos e meio, quase mil denúncias de casos de intolerância religiosa. O número consta em um relatório apresentado em audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio de janeiro em meados de 2015.
No mesmo ano, a jovem Kayllane Coelho se tornava uma dessas vítimas ao ser insultada e atingida por uma pedrada quando saia com amigos de um candomblé no bairro da Vila da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro. A violência sofrida pela menina ganhou grande repercussão midiática e foi sucedida de uma série de atos públicos contra a intolerância religiosa. Naquele momento, os números citados e a violência sofrida por Kayllane reacenderam o antigo debate sobre a criação de uma Delegacia de Combate aos Crimes Raciais e de Intolerância no Estado do Rio de Janeiro, prevista na Lei 5.931/11, mas ainda longe de se tornar realidade.
Os números só fazem crescer: no mês de agosto de 2016, um pai de santo foi assassinado com quatro tiros na cabeça na Vila Valqueire, Zona Oeste do Rio; outro foi morto a pauladas em São João de Meriti; um terreiro de candomblé em Nova Iguaçu foi invadido, imagens foram profanadas e o local foi incendiado. Há relatos de que este último tenha sido registrado como briga de vizinho. Outro caso de intolerância na região metropolitana aconteceu com uma jovem de São Gonçalo, insultada verbalmente pelo motorista de ônibus da viação Tanguá. Ele teria afirmado que não carregaria uma macumbeira no veículo. Em outras regiões do país a situação não é muito diferente. Ao longo de 2015, terreiros de umbanda e candomblé de Brasília e Goiás foram invadidos, depredados e incendiados. No Pará, seis pais de santo foram assassinados só nos últimos doze meses, e há denúncias de que esses crimes simplesmente não estejam sendo investigados.
Kaylane Coelho ao lado de sua vó, Kátia (Foto: Alexandre Borges e Taís Capelini)
No Rio de Janeiro, não seria nenhuma novidade afirmar que os crimes de intolerância religiosa estão articulados a uma complexa rede política e econômica que visa o domínio de territórios periféricos da cidade, como é o caso das favelas e de áreas da Zona Oeste do Rio. São vários os candidatos ao legislativo e executivo municipais que representam interesses de alguns segmentos neopentecostais, transformando a disputa eleitoral em um terreno privilegiado de competição do mercado da fé. Da mesma forma, não seria exagero afirmar que as milícias e os traficantes varejistas de drogas são hoje o braço armado de algumas igrejas neopentecostais nesses territórios. Seu poder político e econômico avança por meio de um jogo político perverso, que capitaliza em torno de numerosos grupos desse segmento religioso.
A mobilização de vários religiosos de matriz africana, Organizações Não Governamentais e lideranças de diferentes religiões se deu a partir da constatação de que a intolerância religiosa contava com um “braço armado” nas favelas. A série de reportagens do Jornal Extra, “O tráfico remove até a fé”, publicada no começo de 2008, trata da imposição de traficantes em várias favelas do Rio, onde os sacerdotes da umbanda e do candomblé deviam se converter a uma igreja ou abandonar a localidade. As reportagens dão conta da expulsão de diversos sacerdotes que não se intimidaram com a imposição dos traficantes, além da estreita relação de pastores neopentecostais – dono da igreja do morro e líder religioso do traficante – que promovia a benzedura das armas utilizadas pelos traficantes. Ainda hoje, traficantes e milicianos proíbem manifestações religiosas em templos de umbanda e candomblé em algumas regiões da Zona Oeste e nas favelas cariocas, e expulsam sacerdotes com o apoio e incentivo incondicional de pastores neopentecostais.
Há nove anos, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) promove, na praia de Copacabana, uma caminhada em defesa da liberdade religiosa. Neste ano, o ato acontecerá no dia 25 de setembro. Apesar das ações propositivas da CCIR e de tantas outras lideranças religiosas, em nível estadual e dos municípios da região metropolitana, há uma considerável omissão por parte dos representantes do poder público com relação à implementação de políticas públicas de combate ao racismo e à intolerância religiosa, e esse cenário tende a se agravar ainda mais quando prestamos atenção aos municípios da Baixada Fluminense.
Historicamente, os dados oficiais sobre os crimes de discriminação racial e religiosa contra os praticantes da umbanda e candomblé são alarmantes, especialmente se considerarmos que há uma enorme dificuldade para o registro desse tipo de crime nas delegacias de polícia. Além disso, há um considerável nível de subnotificações nos registros oficiais. Em geral, os policiais tendem a considerar os crimes de discriminação racial e de intolerância religiosa como casos de menor importância, cujas vítimas acabam sendo desencorajadas a realizar o registro de ocorrência ou desistem porque são colocadas em longas filas de espera, com a justificativa de que o trabalho policial deve priorizar “os casos de maior gravidade” (homicídios, crimes contra o patrimônio, etc.). Na maioria das vezes, como ressaltam as vítimas que buscam registrar suas queixas nas delegacias policiais, as agressões denunciadas passam a constar como “briga entre vizinhos” nos boletins de ocorrência, e não como discriminação religiosa, injúria ou racismo.
A consagração da liberdade religiosa como um direito civil básico está diretamente associada à ideia da liberdade de pensamento e consta nas principais convenções internacionais de direitos humanos. A expressão “liberdade religiosa” constitui o primeiro direito civil reconhecido pelas democracias ocidentais e, nesse sentido, a sua violação significaria uma ameaça à convivência pública entre os cidadãos. A Constituição Federal de 1988, assegura a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assegura o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Mas, na prática, estamos muito longe de atingir esses ideais.
Apesar das mobilizações sociais em torno do tema e das garantias legais, o que temos observado é o aumento dos casos de agressões físicas e de insultos contra os adeptos das religiões afro brasileiras. Sendo assim, o que se espera é que o tema ocupe a agenda de debate dos candidatos aos cargos legislativos e executivos municipais. A discussão em torno das políticas públicas de combate à intolerância religiosa precisa estar presente nas agendas municipais, nas comissões de direitos humanos das Câmaras de Vereadores e nas discussões sobre a elaboração dos projetos de lei dos municípios. A implementação do ensino da história e da cultura africana no ensino básico deve orientar os Planos Municipais de Educação. Da mesma forma, espera-se que haja a promoção de campanhas educativas sobre o tema da diversidade religiosa. A prefeitura pode e deve oferecer oportunidades para que os seus servidores tenham mais acesso a formação, de forma a ampliar o conhecimento sobre a diversidade sócio cultural da nossa cidade e país como um todo. Os municípios devem construir planos de enfrentamento à intolerância religiosa e ao racismo, a partir do envolvimento e da parceria com diferentes setores da sociedade civil, os movimentos afro religiosos, coletivos e movimento negro.
*Fernando Sousa – Pesquisador associado ao Instituto de Estudos da Religião (ISER), membro do Conselho Fiscal e associado da Casa Fluminense e mestrando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UERJ. É um dos diretores e roteirista do curta documentário Intolerâncias da Fé. Sócio diretor da Quiprocó Filmes e idealizador do projeto de documentário “Identidades, religiões e conflitos na escola, aprovado recentemente no edital Viva a cidade da Secretaria Municipal de Cultura da Cidade do Rio de Janeiro.
**Gabriel Barbosa – Mestre em Antropologia pela UFF, onde cursa seu doutorado na mesma área. Sócio diretor da Quiprocó Filmes e idealizador do projeto de documentário “Identidades, religiões e conflitos na escola, aprovado recentemente no edital Viva a cidade da Secretaria Municipal de Cultura da Cidade do Rio de Janeiro.