Foi com os movimentos sociais que eu aprendi a transgredir e a desobedecer

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Texto por
Comunicação Casa
Data
28 de outubro de 2024

Por Aline Grion

Se realizarmos uma breve pesquisa em uma plataforma de busca na internet sobre o tema “educação” veremos imagens de alunos felizes, sentados, enfileirados e comportados. Livros, cadernos, maças, lápis, canetas e corujas coloridas apresentam uma imagem irreal, pouco crítica e questionadora de uma educação que só se daria em ambiente escolar. A educação foi pensada para sujeitos brancos, homens, heteronormativos, sem deficiência, preferencialmente obedientes e pouco criativos. Quando a realidade é mais complexa e o processo educativo se realize ao longo da vida e nos mais diversos espaços. 

Destes as estes, vou destacar os movimentos sociais como esppaços onde as práticas de educação transgressora e a desobediência epistêmica tem a possibilidade de mudar a trajetória dos indivíduos. Sou uma mulher negra pouco retinta, nascida em Petrópolis. Embora naquele contexto não houvesse espaço para dúvidas sobre a minha não-branquitude e sobre alguns condicionantes de classe, foi por intermédio de um movimento social que a minha formação política se iniciou. No PVNC (Pré-Vestibular Para Negros e Carentes) para além do preparatório para o antigo vestibular, tínhamos conversas francas sobre estratégias tanto para a sobrevivência na universidade, quanto para a resistência em um ambiente racista e classista. Principalmente nas aulas de Cultura e Cidadania discutíamos questões sobre classe, raça, gênero, importância dos movimentos sociais para conquistas de direitos e políticas públicas, cidadania e compreensão da necessidade de se pensar coletivo.  

Na UFRJ, em um contexto em que o corpo docente se organizava através de manifestos, livros e artigos contra as cotas e a questão racial era ignorada no currículo, encontrei espaço de fala e de luta no Movimento Estudantil e Movimento de Residências Universitárias. No projeto de extensão Conexões dos Saberes a questão era pensar políticas de permanência e propor diálogos entre a universidade e a Maré, e eu entendi que o fazer científico poderia ser crítico, coletivo, racializado e de disputa por espaços naquele lugar de poder. 

Me formei socióloga e voltei as salas de aula, e no coletivo “Aprendendo a Transgredir”, mais uma vez me fortaleci através de movimento social com proposta de pensar a educação crítica como um meio para a produção de uma sociedade mais justa. Ser uma professora que entende que a educação precisa ser transgressora e desobediente, tem muitos desafios. E eles se intensificam em um contexto de avanço das agendas e discussões da extrema direita sobre as escolas.

Este movimento não foi silencioso e nós educadores tivemos que nos adaptar e nos defender de absurdos como gravações ilegais de aulas, alunos que eram incitados ao desrespeito a judicialização de conteúdos abordados em sala de aula, e até agressões verbais e físicas direcionadas a professores progressistas, críticos ou como nos acusavam, “doutrinadores”.

A escola, que sempre foi polissêmica passou a ser um campo de disputas de primeira hora para a extrema direita com suas pautas conservadoras e moralistas. Se movimentaram em torno da Educação Domiciliar (homeschooling), Escola Sem Partido, Escolas cívico Militares, censura a professores e material didático(quem não se lembra do kit gay?). E sendo acompanhadas por pautas da agenda neoliberal, oferecendo às grandes corporações excelentes possibilidades de lucro advindos da Plataformização do Ensino, e das modificações do Novo Ensino Médio e da privatização da administração das escolas pública. O professor neste contexto é o responsável pelos fracassos dos alunos, o doutrinador e principal elemento de uma instituição arcaica e que não dialoga com  a modernidade. 

Coincidiu o início do meu trabalho como professora de ensino médio em escolas na Região Administrativa de Madureira, região em que moro e o projeto de construir o Coletivo Agenda Grande Madureira. E embora eu seja entusiasta dos processos culturais e históricos da região, se faz urgente pensar em propostas e ações de mobilização para pensar os problemas produzidos pelo abandono do poder público. Meus alunos que frequentemente faltavam aula por conta de operação policial, alunos que sabiam o que é necropolítica e violência estatal para além das teorias, que conheceram através de suas vivências os conceitos “mobilidade urbana”, “direito a cidade”, “racismo ambiental”. Alunos que sabiam que Marechal Hermes é polo gastronômico e que precisa de maiores investimentos, que reconheciam a relevância do Parque de Madureira, mas que sabiam e a pontuavam as lacunas e possibilidades de melhora. Junto com eles pesquisamos sobre a história e a cultura negra da região. E foi lindo ver que pesquisaram em livros, mas também conversaram e relataram as memorias de membros de suas famílias que eram da velha guarda, da ala de compositores, frequentadores do baile, ou que acompanharam e participaram da história da região.

A organização dos meus horários me fez mudar de escola e fui para a região de Coelho Neto. Nesta escola pude realizar um trabalho com minhas turmas onde em grupos os alunos pensavam e imaginavam políticas públicas que resolvessem problemas da região em que moram. Quando se dá espaço para a autonomia intelectual, transgressão e desobediência epistêmica os resultados são surpreendentes. 

Iniciamos as discussões analisando as agendas Rio 2030 doa anos 2022 e 2024, vendo possibilidades de propostas contidas nestas agendas. Em seguida eles pensaram em problemas da região e em políticas públicas que poderiam resolver. A coleta de dados também foi um item obrigatório. Os principais problemas foram a violência, coleta de lixo, lixão irregular, pré-vestibulares sociais. E como gostaram de pensar a tarifa zero! Um tema quase unanime foram as enchentes que devastaram os bairros da região. Os relatos causaram um silêncio pesado. Seguido de revolta. Discutimos muito o racismo ambiental e as escolhas de investimento que o poder público faz para cada região

Eu acredito que os movimentos sociais são exemplos de desobediência epistêmica uma vez que se organizam na contramão do pensamento eurocêntrico, racional, individualista e meritocrático. A relação próxima dos movimentos sociais e escola não é recente. A escola tem muito a aprender com movimentos sociais e a importância da escola como lugar de disputa e o fazer educativo como estratégia para fomentar mudanças é a tempos reconhecido e apreciado pelos movimentos sociais.

Por este motivo convidei o coletivo Fala Acari para ouvir as propostas dos alunos e falar sobre a Agenda Acari que pensa em políticas públicas para a região. Foi um encontro muito importante para meus alunos, e as nossas convidadas relataram o quão proveitoso é estar na escola da região. Fiquei orgulhosa dos meus alunos e esperançosa. Esperança é algo que para a professora Aline e para a Aline ativista como ensinou Paulo Freire, um verbo: Esperançar.

*Aline Oliveira Grion é de Bento Ribeiro, Mestre em educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, cientista social formada na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora antirracista e decolonial, atua na educação básica pública. Atualmente constrói o coletivo “Aprendendo a Transgredir”, é co-fundadora do coletivo “Agenda Grande Madureira” que pensa políticas públicas para a região administrativa Grande Madureira.

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