“Estou aberta a ler mais”: o impacto da educação popular nas periferias

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Texto por
Carín Nuru
Data
6 de dezembro de 2024

Ter contato com histórias parecidas com as nossas, abre novas possibilidades de existência e ajuda a projetar futuros. Para Denizete, uma mulher negra, de 61 anos, mãe de três filhos e moradora do Cacuia, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, essa descoberta aconteceu no Pré-vestibular Enraizados. Foi durante a aula de geografia, que Denizete ouviu pela primeira vez sobre a história de Carolina Maria de Jesus, escritora e catadora de materiais recicláveis, que transformou suas memórias em um dos maiores marcos da literatura brasileira.

“Na última aula, eu ouvi falar de Carolina Maria de Jesus pela primeira vez. Vou fazer 62 anos e nunca tinha conhecido essa autora tão importante.” Esse foi o relato de Denizete, que transmite na sua fala o impacto que a educação popular teve na sua vida. A aluna, que quer cursar Direito, citou Carolina quando escreveu sobre os “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil” na redação do ENEM deste ano, e agora que conheceu a autora, se sente conectada à história e à literatura da sua própria ancestralidade. 

“Hoje eu estou aberta a estudar e ler mais, porque me fez bem!”, completou a aluna, que encontrou na escrita da autora inspiração para seguir estudando.

O relato de Denizete reflete a luta de projetos, que por meio da educação e cultura popular, reconstroem um caminho de valorização da herança negra, assumindo a missão de resgatar nos territórios histórias e saberes que foram apagados, fortalecendo a autoestima e a ancestralidade dessa população.

A Lei Nº 10.639, de 2003, que prevê o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas está longe de ser plenamente executada no sistema de ensino público. Enquanto isso, projetos como o Pré-vetibular Enraizados, Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC) e o Museu da Memória Negra de Petrópolis, por exemplo, utilizam de saberes ancestrais e tecnologias sociais para conscientizar e conectar seus territórios a identidade histórica, cultural e a ancestralidade negra.

Esses projetos enfrentam desigualdades estruturais que moldam a realidade da Metrópole do Rio e do Brasil. Segundo o Mapa da desigualdade da Casa Fluminense, 55% dos inscritos no ENEM são negros, mas 75% dos que não têm acesso à internet também são. Além disso, 95% dos inscritos com renda familiar de até 1 salário mínimo estudam em escolas públicas (Inep 2022), demonstrando como é a realidade educacional da população negra, favela e periférica. A desigualdade também reflete o acesso à cultura dos territórios. Dos 22 municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 17 investem menos de 1% do orçamento em cultura (Siconfi 2022), e 73% dos museus da metrópole estão concentrados na capital (Ibram 2024).

Seja pelo acesso à educação ou à cultura, os dados lançam luz sobre a realidade que a população negra enfrenta, com barreiras estruturais que a distância de conhecer e se conectar com sua própria história. É nessa realidade que os projetos de cultura e educação popular se tornam espaços de combate às desigualdades, a partir do resgate e da construção de saberes e tecnologia ancestral.

Como a educação popular fortalece territórios

O Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC), que atuam na Vila Operária, em Nova Iguaçu, tem mais de 27 anos de trabalho que vai além da preparação para o ingresso na universidade: é um espaço de acolhimento, onde alunos e lideranças se aquilombam. Coordenado por Renato Santos, doutor em Educação pela UFRRJ e fundador do núcleo da região, o projeto também assume como missão resgatar e celebrar a ancestralidade negra.

Desde 1996, Renato coordena o projeto com um olhar que ultrapassa a sala de aula e vai além da preparação para o vestibular. O PVNC realiza aulas de capoeira e visitas anuais ao Quilombo São José, conectando os alunos e as lideranças que atuam no projeto a história e cultura negra. “A gente vai para o quilombo discutir sobre a ancestralidade negra, fazendo um processo de resgate da história. E a capoeira a gente apresenta como esse o símbolo da resistência, da identidade negra e da liberdade”, compartilhou o coordenador.

Ele destaca como o PVNC busca potencializar não só os alunos, mas também as lideranças que atuam no pré. “Nós temos duas frentes: uma é aprovar os alunos no vestibular, e a outra é aprovar os nossos companheiros para a pós-graduação”, afirma o coordenador. Wesley Brownn, foi aluno do PVNC em 2013 e é um exemplo dessa trajetória. Graduado em Serviço Social, ele realizou mestrado em Relações Étino-Raciais, impulsionado por Renato e colegas do pré-vestibular. Hoje, Wesley atua como coordenador e professor de Cultura e Cidadania do PVNC.

Renato e Wesley / Reprodução

“Voltei para o pré na coordenação e também sou professor de cultura e cidadania. Fico muito feliz em poder retribuir um pouco do que esse espaço me deu”, compartilhou Wesley. Ele celebra a oportunidade de trazer para as aulas temas como cultura e herança negra, integrando conhecimento ancestral na preparação para o vestibular. Além de resgatar histórias apagadas, o professor as aulas ajudam a projetar um futuro em que a população negra possa escrever suas próprias narrativas.

O PVNC, assim como o Enraizados, faz parte do Juventude Popular nas Universidades, uma linha de apoio do Fundo Casa Fluminense, que dá suporte financeiro e institucional a 10 pré-vestibulares comunitários com atuação em diferentes municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Esses espaços mostram como os movimentos sociais transformam a educação popular em uma ferramenta de valorização da herança africana, impactando trajetórias individuais, mas também fortalecendo a autoestima coletiva de territórios negros, periféricos e favelados.

Além dos pré-vestibulares, formações como o Curso de Políticas Públicas (CPP) da Casa Fluminense também são espaços de projeção de futuros. O CPP impulsiona lideranças faveladas e periféricas a monitorar, construir e incidir em políticas públicas nos seus territórios, como estratégias para combater as desigualdades. No Guia para Cursos de Políticas Públicas, que sistematiza as metodologias e aprendizados do Curso ao longo dos anos, a Casa Fluminense oferece uma ferramenta prática para que organizações possam promover formações semelhantes nos seus territórios, impulsionando o impacto da educação popular.

O resgate da memória negra

A cultura popular também é uma ferramenta de resgate e preservação da memória negra. Nos territórios favelados e periféricos, ela se conecta à resistência de populações marginalizadas que ao longo dos anos encontrou na música, na celebração, na oralidade e nas diversas manifestações culturais uma forma de manter viva a identidade dos seus povos e populações. É com essa missão que surgem iniciativas como o Museu da Memória Negra de Petrópolis.

Segundo o Mapa da Desigualdade, Petrópolis está entre os 12 municípios da metrópole que possui o CPF da Cultura, como são conhecidos os Conselho, Plano e Fundos Municipais de Cultura. Apesar dessa política, os investimentos não impactam a preservação e resgate da história negra de Petrópolis, e o município tem um histórico de apagamento da presença da população negra na sua narrativa e paisagem urbana, como reafirma o Museu. É nesse contexto que acontece o “Circuito da Memória Negra”, um percurso de caminhada pelo centro de Petrópolis, onde os integrantes do Museu refazem os passos das contribuições da população negra, que teve sua história apagada da cidade.

O arquiteto, pesquisador e coordenador de promoção à igualdade racial de Petrópolis, Filipe Graciano, é um dos fundadores do Museu da Memória Negra. Segundo Graciano, o circuito não é apenas uma caminhada pela cidade, mas um ato de reparação. “É um lugar de enfrentamento que vai de encontro a reparação e restituição dessa população. Não estamos fazendo um movimento só de narrativa e da história, queremos uma reparação a partir da distribuição de terras e bens, por exemplo”, compartilha o urbanista.

O Museu, que começou como um Museu virtual (2021), hoje traz esse percurso para as ruas, atuando como um Museu itinerante, mas tem a projeção de ter um espaço físico, onde a identidade de personalidades negras que fizeram parte do passado e presente da cidade sejam preservados. “Um dos nossos objetivos é romper com a memória negra só a partir da escravidão e trazer todo um potencial de intectualidade e tecnologia negra, registrando a memória dessas pessoas que fazem a história negra da cidade”, explica o fundador do Museu.

Filipe, que também passou por um pré-vestibular social para ingressar na universidade, conhece de perto os desafios da educação pública e o poder de transformação da educação popular. Para ele, a cultura é um caminho para impactar seu território e resgatar a dignidade histórica de seu povo. Entendendo a importância de fortalecer coletivamente a memória ancestral dos bairros de Petrópolis, Filipe Graciano, Renata Aquino, Pedro Cipriano, Lucas Ventura e Ariane Egydio, reconstruíram a história do município a partir de uma perspectiva negra.

“É gratificante a possibilidade de fazer isso coletivamente, tem um provérbio africano que diz: se você quer ir rápido vá sozinho, se quer ir longe vá em grupo”, compartilhou Renata, integrante do Museu, sobre o processo de construção do Circuito.

É no encontro entre as histórias do passado e a realidade do presente que se projeta um futuro menos desigual, onde a cultura negra e a memória ancestral façam parte da história dos territórios. Iniciativas como o Museu da Memória Negra de Petrópolis relembram a importância da contribuição da cultura e educação popular para a transformação dos territórios, fortalecimento de identidades e projeção de um futuro.

Pontes para um futuro mais justo

Para a Casa Fluminense, a cultura também é uma ferramenta de transformação coletiva e uma tecnologia de convivência. Com o lançamento do E-book Bonde Casa: Cultura em Trânsito, que apresenta experiências comunitárias de valorização da cultura negra, periférica e favelada, a Casa mostra como as práticas culturais são capazes de construir pontes entre passado, presente e futuro.

O E-book é uma publicação que conta sobre o Bonde Casa, um projeto realizado entre 2023 e 2024, que teve a proposta de promover um circuito cultural metropolitano nas ações artísticas e culturais, promovidas pela rede de organizações e projetos parceiros da Casa Fluminense. Um passo da Casa em direção a valorização da identidade metropolitana e a economia da cultura, aproximando a discussão sobre a produção cultural nos territórios periféricos e favelados ao seu acesso a políticas públicas.

Na Agenda Rio 2030, publicação da Casa Fluminense que apresenta propostas de políticas públicas para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a cultura também é uma proposta prioritária para a projeção de cidades mais justas e sustentáveis. A proposta de Sistema de Cultura de Memória apresenta a valorização da memória para política, que defende o cuidado com a cidade como dependente também da defesa dos seus detentores e símbolos culturais. Além disso, Pré-vestibular Gratuito também é uma proposta de política da Agenda Rio, que entende essa iniciativa como ferramenta para mitigar a falta de acesso de pessoas periféricas às universidades.

Agenda Rio 2030 / Foto: Lucas Linhares

Essas iniciativas e propostas reforçam a cultura e educação popular como estratégias de combate às desigualdades e também como caminhos para a construção de territórios mais justos. É a partir de projetos sociais e propostas de políticas públicas construídas com a sociedade civil que será possível construir cidades que reconheçam e respeitem suas histórias, celebrem suas populações e promovam o protagonismo das populações periféricas e negras.

Assim como resgatar o passado e projetar o futuro, esses projetos e políticas mostram como o fortalecimento da cultura e da educação popular é uma ferramenta de reparação e esperança – como aquela plantada na vida de Denizete ao conhecer a história de Carolina de Jesus.

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