Por Maya Antunes
Eu maya, mãe solo de uma criança de 6 anos, todos os dias atravesso a cidade com minha filha.
Sair de casa não é apenas um deslocamento, é uma forma sobrevivência. Não é só sobre pegar um ônibus ou um trem, é sobre carregar comigo a vida de alguém que depende do meu cuidado. O transporte público, para quem cuida, nunca é neutro. Ele é rotina e é desigual, sem nenhum cuidado.
No banco do ônibus, organizo lanche, seguro mochila, respondo perguntas, até mesmo é onde acontece o lanche que não deu tempo de acontecer em casa. Na condução lotada, meu braço é escudo contra empurrões, minha voz precisa inventar calma, e pedir assento quando está muito difícil.
Na volta, mesmo cansada, sou eu quem transforma o trajeto em conversa, em riso, em história, porque sei que a travessia também educa. Minha filha aprende sobre a cidade dentro do transporte público, no olhar atento aos vendedores ambulantes, nas histórias que escuta sem querer, no balanço do vagão que embala o sono e as vezes agradeço pelo silêncio, mas meu coração parte toda vez que preciso acordar ela pra seguirmos caminhando pra casa.

Nem sempre o trajeto é aprendizado suave. Muitas vezes, ninguém oferece lugar. E lá estou eu, tentando equilibrar corpo, mochila e criança em pé, enquanto o ônibus arranca. O medo é sempre o mesmo, dela escorregar, cair, ser empurrada no meio da pressa. O corpo pequeno dela, entre cotovelos e bolsas, é constantemente ameaçado por uma cidade que não vê a criança, que não a reconhece como prioridade e um futuro. Fora os motoristas que mesmo uniformizada querem arrumar confusão por eu pedir para ela entrar por trás.
Existe também os riscos silenciosos, mas igualmente violentos. Os olhares atravessados, os assédios que tentam se esconder no aperto do transporte. Enquanto protejo minha filha para não cair, também preciso protegê-la e a mim mesma, dos corpos que ultrapassam limites, das mãos que se aproveitam na multidão. Essa é a dupla vigilância que carrego, guardar a vida física e a dignidade emocional enquanto prezo pela minha também.
Esses não são medos sem fundamento. No Rio de Janeiro, por exemplo, dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram que 172 casos de importunação sexual ocorreram no transporte público em 2022, e 55% das vítimas eram mulheres negras. No mesmo período, menores de idade também foram vítimas, em aproximadamente 22% dos casos envolviam crianças ou adolescentes. Outra estatística importante, de janeiro a maio de um ano mais recente, 554 vítimas buscaram a delegacia por importunação sexual no estado do Rio, destas, 56 casos eram especificamente em transporte público.
Cuidar, nesse contexto, é atravessar a metrópole sem se desligar por um segundo, mesmo cansada. É medir o tempo do deslocamento junto com o tempo da vida, a hora da escola, da consulta médica, do trabalho, do almoço que precisa estar pronto, do banho que antecede o sono. É viver com a matemática do cuidado redobrado.

E quando o transporte falha, atrasa, enguiça ou não chega, não é apenas perda de minutos. É o atraso das crianças na escola, a consulta desmarcada, até mesmo o emprego que não se concretiza, o dinheiro perdido no dia. É mais um cansaço sobre corpos que já carregam o peso de múltiplas jornadas.
Falo do transporte público porque falo de cuidado. Quem depende dele sabe que trilhos, ônibus e metrôs são linhas de sobrevivência. O cuidado não acontece só dentro das casas, ele se espalha pelas ruas, pelas estações, pelos terminais. E precisa de estrutura para acontecer. Uma cidade que não garante mobilidade digna, não garante também a reprodução da vida, nem diretos humanos.
Quando lutamos por transporte de qualidade, não é apenas por conforto. É por dignidade. É pelo direito de exercer o cuidado sem ser violentada pelo tempo perdido, pelo corpo esmagado, pela humilhação de esperar por um ônibus que não chega ou quando chega, passa direto.
É pelo direito de criar filhos sem que a travessia seja sempre marcada pelo medo da violência, pelo risco do assédio, pelo perigo de cair no meio da multidão. É pelo direito de envelhecer sem que a caminhada até o ponto e pegar o transporte seja um obstáculo.
Cuidar atravessando a cidade é uma responsabilidade coletiva que recai quase sempre sobre os ombros individuais de mulheres, e pessoas cuidadoras principalmente negras, indígenas e periféricas. Somos nós que transformamos o trajeto em colo, que seguramos a vida em movimento. E toda vez que uma mãe ou educador sobe num ônibus cheio com uma criança, não estamos apenas nos deslocando, estamos sustentando a cidade e o futuro.
É preciso que o poder público reconheça isso. Que compreenda que transporte não é apenas logística, é política do cuidado. É reconhecer que a cidade só existe porque mulheres e educadores como eu, como tantos outros, seguram o mundo com uma mão e a mochila da criança com a outra. E que o futuro, que tanto se fala em planejar, só será possível quando a mobilidade for pensada também como forma de cuidar.



* Maya Antunes, conhecida como Doula Periférica, é cria da Pavuna, zona norte do Rio de Janeiro. Empreendedora, doula, educadora perinatal, comunicadora e mãe de uma criança de 6 anos, é idealizadora do coletivo Maternidade Favelada, que atua na defesa dos direitos de gestantes, famílias e educadores em territórios periféricos. Conecta justiça climática, justiça reprodutiva e políticas do cuidado, fortalecendo redes entre mães e educadores em espaços de decisão.