Cedae em debate: “Se a gente sair de uma caixa preta para outra não muda nada”, alerta Adauri Souza, do IBG

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Texto por
Silvia Noronha
Data
15 de setembro de 2016

Natural do Rio de Janeiro, mas criado a partir dos três meses de idade em São Gonçalo, no bairro Mutuá, Adauri Souza tomou banho no fundo da Baía de Guanabara; pescou na ponte do Rodízio, na Ilha de Itaoca; andou próximo da margem do rio Imboaçu; e conheceu praias posteriormente aterradas durante a construção da BR-101. Tudo isso quando garoto, nos anos 1960. Na década seguinte, a deterioração da região já era evidente, em função do crescimento populacional sem o devido acompanhamento de obras de infraestrutura urbana.

Mesmo morando atualmente em Niterói, o superintendente do Instituto Baía de Guanabara (IBG) trabalha pela recuperação socioambiental da região de São Gonçalo, focando também na retomada do lazer que ele teve o privilégio de usufruir. “Ainda tem a praia das Pedrinhas e as da Ilha de Itaoca”, lembra ele. Mesmo com a situação de hoje, ele aconselha ao menos um passeio pela praia das Pedrinhas, onde há bares, colônia de pesca e de onde se pode ter “uma das imagens mais bonitas da Baía”, avistando inclusive a ponta da Ilha de Itaoca, com seu morro ainda florestado.

A ligação de berço com a Baía acabou levando seu olhar para todo o entorno da Bacia Hidrográfica e para a qualidade de vida dos moradores da região. Desde 1999 no IBG – instituição que completou 23 anos em 30 de julho –, Adauri já percorreu muitos caminhos em busca do fortalecimento do controle social das ações públicas. Um caminho nada fácil, mas imprescindível para acabar com a “arrogância” do gestor público que se acha “dono” do município, do estado ou de uma secretaria. É o caso também da Cedae, conforme assinala ele nesta entrevista concedida ao ForumRio.org.

A bandeira de Adauri é a da universalização do saneamento. Por não esperar muito da Cedae, ele concorda com as propostas em análise pelos governos federal e estadual de passar à iniciativa privada os serviços de água e esgoto. A primeira proposta, até então em estudo pela Câmara Metropolitana de Integração Governamental, previa a concessão apenas do serviço do esgoto. Com a inclusão do Governo Federal no debate, a ideia passou a ser transferir para o setor privado também a distribuição da água, deixando com a Cedae apenas a captação e o tratamento.

Sua maior preocupação é que o Estado faça uma fiscalização efetiva. “Se a gente sair de uma caixa preta para outra, não muda nada.” Leia a seguir a entrevista na íntegra.

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Adauri Souza – Superindente do Instituto Baía de Guanabara

 

Qual a opinião do senhor sobre a proposta de concessão do serviço de água e esgoto à iniciativa privada?

Adauri: Nós queremos, por princípio, a universalização do saneamento. Entendemos que o serviço pode ser feito por uma empresa pública ou privada, essa questão não é um problema para nós. Não chamamos de privatização, porque o serviço é concedido e continuará público, executado por empresas privadas.

Uma coisa que ainda não está clara nesse processo, no entanto, é quem será o poder concedente. O projeto de lei que cria a Agência Executiva da Região Metropolitana é fruto de decisão legal [o STF definiu em 2014 que funções públicas de interesse comum como saneamento e transporte são de atribuição de um órgão colegiado que agrupe Estado e municípios. A princípio, apenas este ente pode assinar agora contratos de concessão nessas áreas]. A questão é que o projeto de lei que oficializa a criação da Câmara precisa ser aprovado na ALERJ e ele não foi votado ainda. A Cedae tem a concessão nos municípios por meio de convênios, como ela concederia para terceiros uma parte ou o todo desse serviço? Isso não está claro e é muito esquisito. A Cedae acha que é dona do serviço, mas ela é só uma prestadora. Ela não é dona de nada.

Qual a opinião do senhor sobre a ideia do fatiamento do serviço?

O que a Cedae faz muito bem é o tratamento da água, haja vista o Leste Fluminense, onde eles tratam e vendem a água para a Águas de Niterói, que distribui e cobra por esse serviço. Seria atribuir à Cedae o que ela tem de melhor, porque o resto ela não faz bem. A distribuição da água melhorou, mas você sai andando pelos municípios e vê que ainda é muito ruim. A questão do esgoto é uma tragédia e já está dito pelo Governo do Estado que eles não têm capacidade de investimento. Então investe no que faz bem e o resto entrega para que seja feito de outra forma.

Não achamos que tem que ficar nas mãos do Estado, até porque a gestão pública se mostrou incompetente para isso. O que ele precisa fazer é a regulação, que também não funciona muito bem no Brasil, a gente vê as agências que estão aí. Se a gente sair de uma caixa preta para outra, não muda nada. Não sei dizer com clareza qual é a questão da Cedae, mas sempre foi um serviço mal prestado. A questão é: em qualquer serviço concedido, o Estado tem que regular e acompanhar bem. Essa é a função das agências reguladoras, que devem acompanhar os serviços, ter as metas, o alcance, a qualidade, o resultado.

Qual o caminho para essa fiscalização?

A Agenersa (Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio) não faz o papel que tinha que fazer. Ela foi criada para fiscalizar a Cedae sob que parâmetro? No cumprimento do contrato. Se aquilo que está no contrato, como construir uma estação de tratamento, for feito, está bem. Agora se o serviço é bem prestado, se tem resultado de qualidade, não é essa a questão. Que agência reguladora de Estado é essa? Ela é quase que uma auditora dos contratos da Cedae. Por que ela não controla São João de Meriti [município que concedeu o serviço para a Águas de Meriti, em 2015, porém o contrato não está sendo regulado, ao menos por enquanto]? Vamos fazer uma comparação: a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) só regula o plano de saúde X, não regula o Y nem o Z. Isso é uma maluquice.

Diante desse quadro, como fazer controle social dos serviços de saneamento?

O Estado brasileiro deve ser transparente. A questão do controle social passa por a gente ter a gestão pública com toda a sua transparência, com informação colocada na rua, com a diminuição da arrogância do gestor público, que se sente dono do organismo que ele está gerindo. O prefeito acha que é dono do município; o governador, do estado; e o secretário acha que é dono daquele setor. Eles têm que ser respeitados em sua funções, mas eles estão ali fazendo a gestão de algo que não pertence a eles e sim a todos, inclusive a eles.

Quem conhece a Agenersa? Você começa com a falta de transparência nisso. Quando você critica, eles falam: nós criamos uma agência reguladora. Tá, e aí? O que ela fiscaliza, que informação ela dá para a sociedade? Criou-se algo simplesmente para cumprir um preceito legal. Preceito legal deve funcionar para a sociedade. Se não funciona para a sociedade, não serve pra nada. O governo entra e encastela o Estado e a sociedade fica lá fora. Existe o Estado-governo e a sociedade. Parece que são separados, quando não deveriam ser.

Não corremos o risco de manter esse mesmo panorama com as concessões?

Não é que com a parceria público-privada isso não aconteça. As PPPs não vão garantir nunca que o Estado seja responsável com as suas funções. O problema é o que está sendo feito para controlar a prestação do serviço dessa empresa que recebeu a concessão. Se o acompanhamento, o monitoramento do serviço e da qualidade não forem feitos, se o atendimento à sociedade não estiver efetivamente acontecendo, nada garante que a gente tenha serviço de boa qualidade.

A empresa pode até querer ser transparente ou ter essa obrigação do ponto de vista do negócio, mas o Estado é que tem a obrigação de dar a transparência ao serviço concedido. Se eu montar um botequim, não preciso dar transparência das minhas contas aos clientes. Se eu falir, o prejuízo é apenas meu. Mas esgotamento sanitário é um serviço de necessidade pública, por isso é concedido.

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Entrada da Baía e Leste Fluminense

 

O que você espera da discussão sobre concessão, tendo em vista muita gente ser contrária à ideia?

Se a gente cair na discussão meramente do sim e do não, se privatiza ou não, e não levar o debate para como controlar, como dar publicidade à informação, que tipo de contrato será, que obrigações reais as empresas terão e quais as metas a serem atingidas, com clareza para a sociedade saber e poder acompanhar, a gente corre o risco de ter algo semelhante com a telefonia, nos anos 1990.

E essa função de controlar, fiscalizar, fazer a publicidade é do Estado. Ele que deve ser cobrado, porque se a empresa não faz, é ele que tem que cobrar. Nós cobramos do Estado que ele cobre da empresa. O Estado é nosso representante, ele tem uma procuração para fazer esse contrato de concessão.

Outra discussão, específica sobre esgotamento sanitário, é a implantação da coleta em tempo seco num primeiro momento, deixando a rede separadora para depois. Qual a sua opinião a respeito?

Essa é uma discussão técnica. Meu entendimento é o seguinte: temos os rios todos recebendo esgoto. O Brasil todo está atrasado, o Rio de Janeiro, muito. Se a tomada em tempo seco for num planejamento claro de política pública – não de governo–, você começa a resolver inicialmente e depois vai fazendo a separação absoluta. Eu não teria nada contra. O que acontece no Brasil é que o provisório ou o primeiro passo vira uma eternidade.

Se não for um planejamento de política pública e sim de governo, o próximo pode achar que está resolvido, que com 90% do esgoto tratado com tempo seco resolveu o problema da Baía de Guanabara, mas não resolveu o problema da população que vive no seu entorno, porque você continuará com esgoto dentro do rio.

E lembrando que há outra questão que não está entrando na discussão, que é o lixo. Só se fala de água e esgoto. É outro ponto que a questão da Agência Metropolitana não deixa claro.

De fato vários municípios transferem a coleta do lixo para a iniciativa privada e não há regulação.

Exatamente. O lixo é função municipal e isso está na Constituição Federal. O problema não está em se o serviço é prestado pela iniciativa privada ou pelo poder público. O problema está nesses meios cinzentos e nebulosos em que as contratações são feitas e depois no mesmo ambiente de penumbra em que os serviços são realizados e acompanhados. Não importa quem faz.

Quais os principais aprendizados nesses anos de IBG?

Vou falar um pouco da história do IBG, que começou com uma visão eminentemente ambiental da Baía. Ao longo do tempo foi ficando claro que a questão era socioambiental, porque vivemos num complexo urbano sem tamanho. Então passamos a atuar com visão socioambiental, pela melhoria da Baía e da qualidade de vida das pessoas. Com isso, passamos a olhar a questão educacional, dando peso à formação das crianças na direção de uma cidadania crítica, que percebesse a sua responsabilidade pelas questões de seu território de vivência. E também trabalhamos a mobilização da sociedade, num espectro maior.

Nesta última frente, uma das coisas fundamentais era o controle social da gestão pública, porque o cidadão não construirá a estação de tratamento de esgoto ou colocará, ele próprio, a rede de coleta, mas ele pagará por isso. Então ele precisava ter controle dessa gestão. Percebemos então que era preciso mobilizar para fazer controle; e que este controle viria num primeiro momento na forma de cobrança de transparência.

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Rio Alcântara (1960) – Imagem cedida pela Amajac

 

Poderia citar um exemplo de trabalho do IBG?

Em São Gonçalo montamos uma rede de mobilização socioambiental, em 2015, que vem sofrendo revezes. Isso sempre acontece, mobilização da sociedade precisa de um esforço muito grande para as coisas andarem, mas vínhamos fazendo discussões mensais. Sofreu uma interrupção agora, mas vamos retomar. Elegemos como primeiro tema o esgotamento sanitário, porque a rede de coleta na cidade é muito pequena. Vamos retomar e inserir a questão da saúde.

É a sociedade discutindo os seus interesses e ficando mais próxima dos gestores públicos. Pela nossa cultura, elegemos e depois esquecemos; e na eleição seguinte, caímos de pau na pessoa que elegemos ou a reelegemos. Quando você olha, estamos num círculo vicioso que São Gonçalo ilustra bem. A questão do lixo, por exemplo, entra governo, sai governo e não se resolve. Você está na mesma coisa há décadas. Quase todos os governos chegam ao final com déficit de coleta e de pagamento às empresas a quem concedem o serviço, não importa de que partido.

Vemos exemplos como esse espalhados pela metrópole. Como mudar essa realidade?

A sociedade precisa caminhar junto com esses governos. Cobrar do Executivo e do Legislativo, para fazer cumprir. Tem que acabar essas coisas do Legislativo se confundir com o Executivo. Em São Gonçalo, a Câmara Municipal é quase um sistema de feudos. O vereador é ‘dono’ da saúde da área X, ele indica o diretor do posto, faz a obra de pavimentação. O cara, na verdade, faz obra em vez de legislar.

Temos colocado isso em discussão, sempre ligando à melhoria da qualidade de vida da população e da qualidade ambiental da BG, até porque associamos à ideia de trazer de volta o lazer na Baía, que as pessoas tinham em São Gonçalo e deixaram de ter. Não é uma questão apenas de quem está numa associação de moradores ou em ONGs, é de todos. Tentamos ampliar a discussão, para não ficar somente nas lideranças, para que elas não façam como os vereadores e passem a saber o que é melhor para a sociedade. É para que a sociedade seja dona do seu patrimônio.

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Baía vista de São Gonçalo

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