Por Henrique Silveira
No dia 30 de abril, comemoramos o dia da Baixada Fluminense. Para aqueles que vivem, atuam e se preocupam com a região, é sempre um momento para valorizar os aspectos positivos da história e da cultura dos municípios que a compõem, fortalecendo a identidade e a autoestima de sua população. Mas também é uma oportunidade para refletir sobre as enormes desigualdades sociais e econômicas que marcam esse território e os desafios para garantir direitos básicos aos seus habitantes.
A data de 30 de abril refere-se à inauguração da primeira Estrada de Ferro construída no Brasil, em 1854, que ligava o Porto de Mauá (Estação Guia de Pacobaíba) à Raiz da Serra, no pé da Serra de Petrópolis. Assim, o dia da Baixada faz uma homenagem a um importante marco histórico do processo de urbanização e modernização do país: a construção das ferrovias. No final do século XIX e início do XX, elas representaram a decadência dos portos fluviais e o estabelecimento de um novo padrão de uso e ocupação do solo, com a formação de vilas e povoados no entorno das estações ferroviárias, que deram origem aos atuais municípios da Baixada.
Nas comemorações do dia da Baixada de 2017, tive a oportunidade de participar da construção de uma ação cultural em Imbariê, 3° distrito de D. de Caxias, com a o Fórum Grita Baixada, a BF União Ativa, a Casa Fluminense, ComTrem, Pastoral da Juventude, Paróquia de Santa Clara e outros militantes da cultura local. A ação contou com todos os elementos da cultura hip hop – rap, break, DJ e grafite – muito presente na Baixada. O grafite realizado nas estações de trem de Imbariê e Santa Lucia teve um toque ainda mais especial, pois ele levantou uma bandeira de luta que motivou a realização da ação cultural: defender a implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) nos ramais de Vila Inhomirim e Guapimirim e a revitalização urbana do entorno.
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A história dos trens metropolitanos no Rio de Janeiro tem mais de 150 anos, inúmeros personagens e um longo processo de ascensão e declínio, que alcançou a marca de 1 milhão de passageiros/dia na década de 1980 e chegou a transportar 145 mil/dia em 1996. Esse vergonhoso processo de sucateamento dos trens tem origem na priorização do transporte rodoviário em detrimento do ferroviário por parte dos governos Federal e Estadual, conforme podemos constatar em ampla literatura sobre o assunto. O argumento que queremos discutir neste texto é a compreensão da malha ferroviária do Rio (sua forma e função) no processo de construção e reprodução de uma metrópole extremamente desigual.
O geógrafo Maurício de Abreu no clássico “A evolução Urbana do Rio de Janeiro” (1987) afirmava uma tendência que, infelizmente, é terrivelmente atual. Segundo Abreu, “O modelo do Rio tende a ser o de uma metrópole de núcleo hipertrofiado, concentrador da maioria da renda e dos recursos urbanísticos disponíveis, cercado por estratos urbanos periféricos cada vez mais carentes de infraestrutura à medida em que se afastam do núcleo, e servindo de moradia e de local de exercício de algumas outras atividades às grandes massas de população de baixa renda”.
foto: Henrique Silveira
Em relação aos trens metropolitanos, duas datas se destacam nos capítulos recentes da história ferroviária fluminense. Em 1998, o sistema de trens foi privatizado para a Supervia, num consórcio formado por 4 empresas. Em 2010, a Odebrecht Transport assumiu 60% das ações e levantou a expectativa da retomada e modernização do sistema. O montante de investimentos previstos era de 2,4 bilhões, dos quais 1.2 bilhão seriam oriundos do governo do Estado e a outra metade da Supervia. Esse recurso foi aplicado em melhorias nas vias permanentes, na rede aérea, substações de energia, telecomunicações, modernização e aquisição de novos trens e reforma de algumas estações. É necessário reconhecer a importância desse investimento no sistema ferroviário fluminense, sobretudo, depois de décadas de contínuo sucateamento. No entanto, a demanda de recursos para a modernização é maior do que o valor já investido. E quando comparamos o total de investimentos dos trens metropolitanos com o valor inicial previsto no metrô da Barra da Tijuca, o modelo de desenvolvimento concentrador e desigual do Rio fica escancarado.
O investimento público estimado para o Metrô Ipanema-Barra da Tijuca era 8,5 bi, ou seja, ¼ do valor total dos investimentos previstos nas Olimpíadas (39.1 bi). A obra não estava prevista no Dossiê da candidatura do Rio às Olimpíadas, mas, depois do resultado, decidiu-se levar o metrô até a Barra. O principal argumento para a empreitada foi de que seria uma obra fundamental para os deslocamentos durante os jogos e que se tornaria um importante legado para a mobilidade urbana no Rio. Ora, todos concordamos que o Rio precisa de investimento em mobilidade urbana, pois assumimos o posto de metrópole com maior tempo de deslocamento casa x trabalho do Brasil (47 min), a frente de São Paulo (45,6 min). Mas a maneira de debater o questão da mobilidade (e da desigualdade) passa pela escala em que enxergarmos o Rio e os fluxos de deslocamentos na cidade metropolitana.
Atualmente, 2 milhões de pessoas entram diariamente na capital em busca de emprego, acesso à educação, saúde e os mais diversos serviços, congestionando as maiores vias de acesso da cidade como avenida Brasil, Presidente Dutra, Av. W.Luiz e Ponte Rio-Niteroi. É a cidade hipertrofiada que o Maurício de Abreu nos alertou. A insistência de pensar o Rio apenas como franja costeira entre o mar e a montanha, torna sua imensa periferia invisível no debate público e nas prioridades de investimento público e privado. Dessa forma, acumula-se o déficit de investimento em infraestrutura na periferia, enquanto o recurso público aumenta o valor do solo urbano e dos imóveis nas áreas mais abastadas da cidade.
fonte: sites das concessionárias
Com a atual crise política e econômica do Rio, somando a contenção de investimentos federais (PEC 51), não existe cenário de investimentos públicos nos próximos anos. No entanto, mesmo no cenário de recessão, percebemos que a lógica da hipertrofia permanece. Recentemente o governo do Estado e o da prefeitura do Rio sinalizaram positivamente para dois investimentos na Barra: um seria levar o metrô até o Recreio, passando pelo mesmo traçado do BRT TransOeste, e o outro seria a construção do serviços de Barcas. Isso é razoável? A região que mais recebeu recursos públicos e privados nos últimos 8 anos, com o imperativo das Olimpíadas, continuará drenando recursos públicos da cidade?
Uma das razões para concentração de investimento é a ausência de um marco de planejamento e governança que redirecione os recursos públicos e privados de forma a diminuir as desigualdades da cidade maravilhosa. Sem um pacto que articule planejamento, governança, transparência e participação para garantia do interesse público, as forças do mercado imobiliário continuarão demandando infraestrutura pública e o desenhando a cidade seguindo uma lógica de maximização dos lucros. Por isso, é importante a ALERJ retomar a discussão sobre o PL 10/2015, que estabelece um novo modelo de governança metropolitana.
Em relação aos trens, no caso dos ramais de Saracuruna x Vila Inhomirim (15km) e Saracuruna x Guapimirim (40km), que atravessam os municípios de Duque de Caxias, Magé e Guapimirim, a situação beira ao ridículo. São locomotivas movidas a diesel, com média de 58 anos de idade, parte dos equipamentos restantes da antiga Rede Ferroviária Federal (RFFSA). Não existe bilheteria nas 20 estações desses ramais e a grande maioria se encontra em péssimo estado de conservação. Recentemente, a Supervia promoveu reformas nas estações de Vila Inhomirim, Magé, Piabetá, Bananal e Fragoso, fez a manutenção da via permanente e das locomotivas, mas é evidente que o recurso de 2.4 bilhões destinado ao sistema ferroviário nos últimos anos não chegou a esses ramais.
Um estudo produzido pelo Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro (SENGE-RJ), o Projeto Central, em 2010, afirma a viabilidade técnica e financeira para a implantação de um sistema de Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) nos dois ramais ao custo de 122 milhões, em Guapimirim. Para efeito de comparação, o teleférico do Alemão (hoje parado) custou 210 milhões. A opção pelo VLT nesses ramais possui algumas vantagens, entre elas o valor de investimento menor do que o de trens elétricos, a reutilização da via permanente atual e a não necessidade de construir muros ao longo das vias, evitando segregação entre as comunidades e bairros do entorno. Um investimento desse porte, articulado com uma visão de redução de desigualdades na metrópole, pode ser um indutor para o desenvolvimento urbano, econômico e social da região, conjugando investimentos em habitação, equipamentos públicos no entorno das estações, o fortalecimento do comércio e empreendedores locais e até a mesmo a construção do Parque Urbano de Imbariê ao longo da via, inspirado no Parque de Madureira. Imagina uma viagem de VLT até Guapimirim, no fundo da baía de Guanabara e aos pés do dedo de Deus? Esse é o Rio que devemos projetar.
Será um sonho desejar o VLT? Não. A luta dos passageiros pela manutenção e modernização desses ramais é antiga e permanece até hoje. A Comissão de Luta pelo Trem (ComTrem), foi fundada em 1985 por passageiros que se uniram para que os ramais não fossem desativados no bojo da eliminação das ferrovias no país. A resistência dos passageiros funcionou, os trens permaneceram e houve melhorias pontuais, mas ainda há muito por ser feito. Hoje a principal bandeira de luta da ComTrem é a defesa do VLT Vila Inhomirim e Guapimirim.
Temos clareza de que não haverá investimentos em 2017 e 2018, mas, para quem já aguarda há mais de 30 anos, garanto que vamos resistir por mais alguns. Nesse período a tarefa do movimento será ampliar a articulação e a discussão com outros atores nos três municípios, como comércio, escolas, igrejas, movimentos sociais, coletivos de juventude e cultura, e com os agentes políticos, deputados, vereadores, prefeituras, governo do Estado e Supervia. Em tempo de crise, devemos semear trabalho e esperança. E quando a crise passar, queremos que a periferia metropolitana do Rio seja prioridade nos investimentos públicos. O VLT de Vila Inhomirim e Guapimirim podem ser o marco urbanístico de um novo tempo para o Rio, mais justo, integrado e sustentável.
Henrique Silveira é coordenador executivo da Casa Fluminense