Deixar faltar água e esgotamento é violação de direitos humanos

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Comunicação Casa
Data
4 de janeiro de 2018

Por Silvia Noronha

Quando nos deparamos com falta d’água, estamos falando de violação de direitos humanos, orienta Léo Heller, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. Com mandato outorgado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, Heller faz voluntariamente dois relatórios temáticos por ano, além de dois anuais sobre a situação de diferentes países.

Seu trabalho pode ser um marco importante na direção de soluções para problemas frequentes, entre eles, os de regulação e de acessibilidade financeira. “A rigor, cortar água de quem não pode pagar é violação dos direitos humanos. Então, os países signatários dos tratados e resoluções deveriam ter uma lei que claramente proibisse o corte nesses casos”, afirma ele.

Leia a seguir a entrevista dividida por tópicos, com o objetivo de facilitar a compreensão do tema sob a ótica dos direitos humanos.

Origem do saneamento como direito – “No arcabouço legal internacional, os direitos à água e ao esgotamento sanitário derivam do artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que trata do padrão mínimo adequado de vida. Posteriormente, várias convenções, como das crianças, das mulheres, das pessoas com deficiências, citaram explicitamente o direito à água, mas é em 2010 que a ONU aprova a resolução que define mais especificamente o direito humano à água e ao esgotamento sanitário. Já tinha havido uma tentativa antes, com voto contrário de vários países, inclusive do Brasil. Porém em 2010, o Brasil é um dos países que mais fortemente apoia a resolução, apresentada pelo governo da Bolívia, e aprovada com 123 votos favoráveis e 41 abstenções. O direito à água fala do uso prioritário para consumo humano. Se numa comunidade há uma empresa que está reduzindo a disponibilidade de água para consumo humano a um nível insuficiente, está havendo violação do direito”, afirma Heller.

Falta incluir na Constituição Federal – “Vários países já mudaram sua Constituição para incluir os direitos à água e ao esgotamento sanitário. O Brasil não fez isso. Existem propostas de emendas constitucionais (PECs), mas aparentemente a agenda do Congresso e do governo é outra. O Brasil está atrasado em relação a isso, mas o Judiciário brasileiro tem chamado o tema, fazendo prevalecer esses direitos”, disse.

Como avaliar à luz do direito humano – “De forma bem esquemática, o que se faz é associar duas dimensões distintas: o conteúdo normativo e os princípios dos direitos humanos. No caso da água, de acordo com o conteúdo normativo, cinco requisitos devem ser cumpridos:

Para o esgotamento sanitário, a esses elementos se agregam os requisitos da privacidade e da dignidade.

Já entre os princípios estão o do direito à informação e à participação, além da igualdade e não discriminação, que é muito central. O padrão de fornecimento desses serviços no Brasil é discriminatório. Se fizermos qualquer distribuição de quem tem e de quem não tem acesso – ou quem tem melhor ou pior –, veremos sempre que quanto mais rico, melhor o serviço. Este é um padrão que tem se mantido no Brasil de forma muito acentuada.

Quando associamos o conteúdo normativo e os princípios, podemos analisar se está ou não havendo violação de direitos humanos. Um princípio muito interessante de analisar é o do cumprimento progressivo, ou seja, é esperado avanço gradativo. Quando há retrocesso, há violação”, explica.

Falha na regulação dos serviços – “O processo de regulação pode ser um instrumento importante para enquadrar esses serviços no marco dos direitos humanos. Entretanto, em um relatório que fiz sobre regulação, acabou ficando claro como essas agências são em geral orientadas pelos aspectos econômicos e não incluem em seus ordenamentos os princípios dos direitos humanos: acessibilidade, participação etc”.

Acesso para os mais pobres e proibição de corte de água – “Outro relatório foi sobre acessibilidade financeira, um tema que me parece muito central, porque a grande preocupação dos reguladores e dos prestadores dos serviços é que seja economicamente sustentável. E eu concordo com essa preocupação, porque quando isso não ocorre, o resultado é o sistema se deteriorar, além de não haver expansão; e os pobres, em geral, são os que sofrem. Mas associado a isso precisa haver o cuidado com a acessibilidade financeira. Existem algumas experiências interessantes no mundo sobre mecanismos para garantir o acesso. Aqui no Brasil há tarifa social em alguns estados, porém muitas vezes são mal aplicadas, com abrangência pequena e baixa capacidade de detectar quem realmente precisa. Alguns países estabelecem um mínimo vital gratuito, como África do Sul e Colômbia; e outros possuem subsídios. Existem muitos modelos e não há constatação de qual deles consegue focalizar as pessoas que precisam. Às vezes a intenção é boa, mas o resultado acaba perpetuando a exclusão dos que não podem pagar.

Associado a esse princípio tem a proibição do corte. A rigor, cortar água de quem não pode pagar é violação dos direitos humanos, então os países signatários deveriam ter uma lei que claramente proibisse o corte nesses casos. Quando aplicamos a lente analítica dos direitos humanos, podemos ressignificar melhor a área de saneamento e, com isso, enxergar mais as violações.

Penalidade para violadores – A expressão violação dos direitos humanos tem pelo menos duas dimensões: jurídica – quem viola tem que ser juridicamente penalizado e obrigado a cessar a violação e reparar os danos; e política, que me parece mais importante. Falar em violação de direitos humanos tem uma força que constrange e pode ajudar nas lutas na direção de uma visão mais social. A ONU não é homogênea, é um reflexo da geopolítica mundial, no entanto,  o Conselho de Direitos Humanos, tradicionalmente, tem posturas muito progressistas.

Existe uma dinâmica chamada de revisão periódica universal, na qual todos os países são avaliados a cada cinco anos, quando é feita uma radiografia do desempenho de cada um quanto ao cumprimento dos direitos humanos. O que pode resultar dessas reuniões, que são abertas, é constrangimento. É muito difícil a ONU obrigar um país a remediar uma violação. Mesmo assim, a pressão internacional pode ter seu papel. Nesse período de um ano e meio, houve várias declarações da ONU contra o governo brasileiro, como em relação à Samarco, à Zica, à PEC do Teto e aos direitos indígenas.

 

Retrocesso no Brasil – O Brasil fez um esforço enorme de elaborar o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), que garantiria uma visão de 20 anos, e está engavetado. O governo trocou essa agenda pela da privatização e redução dos investimentos. Se olharmos os países em situação mais bem resolvida, que são os desenvolvidos, veremos que eles garantiram isso com décadas sequenciais, quase um século, de investimentos públicos contínuos.

Privatização à luz do direito – A discussão não é simples. O direito à água não prescreve o tipo de gestor, nem diz que se privatizar, necessariamente haverá violação. Tenho alguma experiência em pesquisar privatização, mas não como relator da ONU, que me revelam diferentes preocupações nos processos de privatização, inclusive de violação dos direitos humanos. De fato, a tendência internacional hoje é muito mais no sentido de remunicipalizar, de reestatizar. Alguns países estão indo no caminho da privatização e são situações mais particulares, como a China, que está abrindo mais o capital, ou países europeus submetidos à troika, num processo com reestruturações e reforma fiscal.

Dois anos atrás saiu uma publicação muito interessante, que fala de 180 experiências de remunicipalização recentes no mundo, países como França, Estados Unidos, Argentina, Bolívia, nações da Ásia. Alguns processos de privatização levam a retrocessos e a violações, como aumento do preço da água, recusa em expandir o sistema para populações mais pobres, baixa participação, informações opacas.

 

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