Todos os dias, a universitária Joana Bonifácio pegava o trem na estação Coelho da Rocha a caminho da Fundação Centro Universitário da Zona Oeste do Rio de Janeiro (UEZO), em Campo Grande. Eram 100 quilômetros, uma média de quatro horas diárias só nesse trajeto. Joana era a filha mais velha de Teresa Cristina e João Roberto. Foi a segunda pessoa da família a ingressar em uma universidade pública, um sonho compartilhado por todos da casa. No dia 24 de abril de 2017, há quatro anos atrás, a estudante morreu ao tentar entrar em um trem na estação de Coelho da Rocha, no município de São João de Meriti. Joana Bonifácio tinha apenas 19 anos quando teve a vida interrompida pela precariedade e negligência. Ao tentar embarcar no vagão, uma das suas pernas ficou presa na porta, ela se desequilibrou e caiu no vão entre o trem e a plataforma. O maquinista deu a partida e Joana foi arrastada pelo trem por mais 20 metros, sem que nenhum sensor fosse acionado. Seu corpo ficou estirado sob os trilhos por 8 horas e sua família soube da morte via redes sociais.
O caso de Joana Bonifácio não é isolado
As denúncias sobre a falta de qualidade do serviço prestado pela empresa Supervia são históricas. Quem anda de trem, principalmente nos ramais mais esquecidos pela Supervia, como a linha Belford Roxo onde Joana morreu, sabe dos riscos que existem da roleta para lá. Um desses perigos é o amplo espaço entre o trem e a plataforma. Um levantamento produzido pela Casa Fluminense em parceria com a pesquisadora Rafaela Albergaria, prima da vítima, mostra que de 2008 a 2018 foram registrados 368 casos de homicídios por atropelamento ferroviário, de acordo com os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). Apenas em 2019, antes da pandemia, na Região Metropolitana do Rio, 9 dos 12 municípios atravessados pela linha do trem registraram mortes nas mesmas condições. Foram no total 70 atropelamentos, uma morte por semana na média anual, sendo que 72,6% dos casos são de pessoas negras. Esse levantamento foi atualizado no dia 26 de abril, a partir dos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) da Secretaria Estadual de Saúde, mas os números de óbitos podem ser ainda maiores já que os casos ainda seguem sendo computados no banco da secretaria.
Os números de homicídios culposos, aqueles em que não há a intenção de matar, podem ser maiores do que os dados apresentados. A história de Joana Bonifácio ilustra essa possibilidade, a sua morte nunca foi contabilizada nas estatísticas. A concessionária tentou inicialmente classificar o ocorrido como um caso de suicídio, segundo afirma a família da vítima, e depois como imprudencia da passageira. A falta de transparência e registros incorretos provocam os pesquisadores a imaginar que esse cenário de mortes nos trens pode ser ainda pior. É o que contou o especialista em mobilidade e coordenador executivo da Casa Fluminense, Vitor Mihessen.
“Imagina quanto outros casos sem investigação e aprofundamento corretos existem, no caso da Joana houve uma pressão da família para que os protocolos fossem seguidos. Mas, existem casos que são ainda mais difíceis de se ter os dados notificados. Faltam protocolos por parte da concessionária e das delegacias para fazer com que todos os ocorridos virem informação e em seguida fontes para mudanças nas políticas urbanas. Só para se ter uma noção desse apagamento, quando estávamos fazendo a pesquisa, tivemos que requerer a mesma informação 16 vezes, isso não pode acontecer”, relatou Mihessen
A Teresa Cristina, mãe da Joana, estava acostumada a andar de trem todos os dias e contou como a morte da filha está ligada à negligência da Supervia com os passageiros, principalmente dos ramais mais distantes do centro.
“Eles mandam os piores trens aqui para a Baixada. Já tive que sair correndo do vagão por causa de incêndio e muitas vezes ir andando sob os trilhos quando o trem quebrava no meio da viagem. Quando a Joana morreu, o trem que a atropelou seguiu viagem normal, como se nada tivesse acontecido. O que fizeram com a minha filha, uma menina que era puro amor, foi desumano. Joana não merecia ter tido seus sonhos interrompidos dessa forma tão brutal”, lamenta a mãe.
De quem é a culpa?
Em nota, a Supervia afirmou que o atropelamento seguido de morte da passageira aconteceu porque Joana tentou entrar em um trem em movimento. No boletim de ocorrência, a única testemunha ouvida foi um segurança da própria empresa, que confirmou a história. A família nega e afirma que passageiros relataram que o segurança nem estava na estação na hora da morte. Uma prova que elas apresentam é que o profissional afirma em depoimento que a mão da estudante ficou presa na porta do trem quando na verdade teria sido sua perna.
No ano passado, a Supervia foi multada em quase um milhão de reais pela morte de outros dois passageiros, que ocorreram também por conta do espaço do vão entre o trem e a plataforma. A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) prevê na norma 14021/2005 que os limites máximos de vãos e desníveis entre o trem e a plataforma não podem ultrapassar 10 cm e 8 cm, respectivamente.
O caso da Joana foi um dos principais pontos da CPI aberta na Alerj em 2017 para investigar as irregularidades da gestão pública no setor de transporte público. No relatório final da investigação o papel da Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes do Rio, a Agetransp, é questionado e criticado pelos deputados e técnicos da área. A agência, que tem o papel de fiscalizar as concessionárias, só abriu o processo para investigar as causas do acidente da Joana três meses após a morte da estudante, segundo o relatório final da CPI. A pesquisadora Rafaela Albergaria, que é prima de Joana Bonifácio, contou sobre o descaso das instituições com o que aconteceu. A mestre em Serviço Social e ativista em movimentos antirracistas produziu junto com a Casa o livro Não Foi em Vão, que retrata a morte brutal de Joana e de como o ocorrido é recorrente nas plataformas da Supervia.
“A agência tem a obrigação de investigar todos os acidentes, mas a única coisa que eles fizeram no caso da Joana foi reafirmar a suposta investigação da Supervia, que tinha como única testemunha o guarda da própria empresa. Assim, a ação criminal acabou sendo arquivada por falta de provas. A Agetransp não fez nenhuma perícia técnica efetiva. Esse relatório coloca a Joana como a culpada exclusiva pela sua própria morte. A entidade foi conivente com a Supervia e não com os direitos dos passageiros”, afirmou Rafaela.
A Agetransp informou que a Supervia foi multada no valor de R$ 253.395.43 pela morte da estudante, mas que esse valor ainda não foi pago. A tramitação do processo regulatório permanece em aberto e ainda cabe mais um recurso para a empresa. A omissão do governo em todo esse processo também é questionada pela pesquisadora.
“ O estado não se responsabiliza pelos territórios pretos e periféricos. Na omissão do governo, as empresas exploram essa população com preços altos e uma série de violências”, resumiu Rafaela.
50 anos de Supervia, o que pode mudar?
Os trens do Rio atravessam 12 municípios da região metropolitana e transportam quase 600 mil pessoas por dia, segundo informações da Supervia. A empresa já está há mais de 20 anos à frente da administração do transporte e em 2010 fez um acordo com o governo para estender seu contrato até 2048. Com a assinatura de um oitavo aditivo ao contrato de concessão, a privatização tem chances de completar 50 anos. A contrapartida exigida pelo estado eram as obras nas estações para que as plataformas se adequassem às normas de acessibilidade. A história de Joana e os dados apresentados anteriormente mostram que as mudanças exigidas há mais de 10 anos nunca foram completadas. Questionada sobre o descumprimento, a Agetransp informou que a Supervia tinha até o final de 2020 para regularizar as estações, mas que com a pandemia o prazo foi congelado e só volta a valer quando for decretado o fim da crise sanitária. No futuro, caso a empresa não faça as mudanças, a agência reguladora vai multar a Supervia.
Em 2019, a questão da falta de acessibilidade nos trens voltou a ser cobrada, desta vez junto ao Ministério Público que chegou em um novo acordo com a empresa. Ambos assinaram o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que suspendia uma série de ações civis contra a empresa em troca de um relatório da realização de um Relatório de Diagnóstico de Acessibilidade das 104 estações. Com essa análise em mãos um novo TAC seria feito para esquematizar o cronograma e execução das obras necessárias. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro informou que a Supervia entregou o relatório na data correta e que um novo TAC com cronograma das obras e execuções já está em tramitação, porém não disponibilizou o relatório.
Uma nova semente
Do luto à luta, a família da estudante Joana Bonifácio está há quatro anos à espera da primeira audiência da ação civil aberta contra a Supervia. Durante esse tempo, além das manifestações, a família não parou na cobrança por justiça. Entre as principais ações estão o lançamento do livro contanto a história da jovem e também a atuação ativa na CPI da Alerj . Um novo passo foi dado neste mês de abril. As deputadas estaduais Renata Souza e Mônica Francisco produziram o Projeto de Lei 4030/2021 para a criação do Dossiê Joana Bonifácio. O objetivo da proposta é dar mais transparência aos casos, para isso a medida quer tornar obrigatório a publicação sobre os casos de atropelamentos ferroviários e lesão corporal, além de colocar essas informações na base da elaboração de políticas públicas para a área. O caso da jovem também ecoa a nível nacional. A deputada federal, Talíria Petrone, apresentou o Projeto de Lei Joana Bonifácio, PL 1524/2021, que busca a criação do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por trens ou por sua carga.
“O dinheiro não vai trazer minha filha de volta, mas a Supervia precisa aprender que não vai mais passar impune e só assim a gente chama a atenção deles. Antes do processo, a concessionária nem havia tentado entrar em contato com a gente. Isso tem que mudar. Estamos fazendo essa ação para que o serviço melhore, esse é meu desejo”, contou Cristina, mãe da Joana.
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