Por Rafaela Albergaria*
A política de segurança pública tem sido apontada como principal preocupação dos governos, da mídia e de diferentes setores sociais. Os discursos de extrapolação da violência, vendidos pelos principais veículos midiáticos, semeiam na população o medo generalizado e a necessidade de se adquirir segurança.
Há menos de um mês, dormimos e acordamos com a notícia de uma intervenção federal justificada pelo governo com a suposta “urgência” de conter o desenfreado avanço nos indicadores de criminalidade e violência. Contudo, dados oficiais disponibilizados pelo ISP contradizem essa afirmação.
Em período de eleição, a idealizada segurança pública aparece com bastante centralidade nos discursos políticos. O que precisamos refletir é se essa lógica de segurança se relaciona aos princípios de universalidade que supostamente pautariam uma sociedade democrática. Ela comporta e é demandada por e para toda sociedade?
Não de hoje, setores de movimentos sociais e da sociedade civil, principalmente os relacionados ao movimento negro, têm questionado o caráter restrito da concepção de segurança pública que sustenta as políticas públicas e privadas no campo. Não é uma especificidade do Rio de Janeiro, porém podemos observar na metrópole fluminense a concentração dos equipamentos públicos nas áreas mais elitizadas da cidade em contraponto à extrapolação da violência nas periferias e favelas.
A busca pela paz, apresentada como universal, presente nos discursos dos gestores públicos, sustenta a recorrente e quase cotidiana realização de operações com uso do Caveirão e tanques de guerra, denunciadas pelas inúmeras violações de direitos básicos da população nas favelas e periferias do Estado.
Longe de constituir uma mera distinção de renda, essa relação assimétrica na distribuição e na concepção de segurança resguarda nexo mais profundo: é atravessada e constituída por relações raciais presente desde nossa conformação enquanto nação.
Somos um país forjado pela violência, pelo extermínio dos povos nativos, pelo sequestro e escravidão de milhões de africanos que construíram essa nação, mas sempre estiveram alijados do acesso às riquezas produzidas, inclusive por eles mesmos. O que reivindicamos como expressão máxima de nosso convívio harmônico entre as diversas etnias – a suposta democracia racial – é forjado pelo estupro institucionalizado das negras escravizadas, que conheceram aqui o suicídio, como forma de se libertar de toda brutalidade de existirem como simples mercadoria, tendo como opção morrer lutando, ou simplesmente morrer.
Hoje a política de drogas faz o casamento entre a negação de acesso a direitos com os reflexos mais brutais da criminalização dos pretos, pobres e periféricos. Em nome da suposta guerra às drogas em prol da segurança e da paz, potencializa-se a cristalização das desigualdades sociais. Os territórios pretos, por toda essa construção, se estabelecem como essencialmente precários de todos os equipamentos públicos. A suposta insegurança é a justificativa para a não garantia de políticas sociais, e nesse sentido o braço coercitivo do Estado, eleito como a única política possível para os “indesejáveis”, garante a eliminação física dessa população ao passo que forja novos mecanismos de controle social.
Essa é a real significação dessa intervenção. O genocídio promovido pelo Estado contra o povo negro possibilita que grandes empresas do ramo de segurança, de armamentos, atinjam e extrapolem suas expectativas de lucro, oportunizando a inversão de capitais em busca de sua valorização.
O racismo não faz parte do nosso passado, ele é o passado e o presente somados. Ele determina o alto índice de assassinatos de jovens negros, determina sermos maioria nas prisões, nos piores postos de emprego, destituídos dos direitos mais essenciais e minoria nos espaços de poder.
A atual intervenção tende a aprofundar as violências que atingem diretamente e preferencialmente o povo negro. Desnudar as relações raciais que formam e sustentam esse processo faz-se fundamental para interromper esse ciclo que se arrasta por tantos contextos.
Por todos esses motivos, Iser e Casa Fluminense convida para o Seminário Das Senzalas às Prisões: filtragem racial em tempos de intervenção, que faz parte da Campanha 21 Dias de Ativismo contra o Racismo, construída com a Comissão de Acompanhamento, Permanência e Apoio às Ações Afirmativas do PPGSS-UFRJ. No evento iremos discutir a relação entre racismo estrutural e intervenção federal, seus rebatimentos sobre o direito à vida e à liberdade, expressas no genocídio e no crescente índice de encarceramento do povo negro, bem como as possíveis políticas de reparação.
*Rafaela Albergaria é mestranda em Serviço Social pela UFRJ e pesquisadora no ISER.
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