Cultura como exercício de cidadania

Categorias
Texto por
Luize Sampaio
Data
2 de setembro de 2022
Cultura, pandemia, indicadores 

por Veronica Diaz Rocha*

As Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, criadas durante a pandemia para fortalecer o setor da cultura, foram uma grande vitória de todo o país e também uma resposta à importância desses profissionais. Com a mobilização da sociedade civil e atores culturais, o Congresso tinha conseguido garantir espaço no orçamento para continuidade das leis emergenciais, mas, em uma medida de ataque realizada esta semana, o governo Bolsonaro criou uma Medida Provisória nº 1135/2022 que adia a execução dos recursos de 2022 para 2023 e 2024. Nesses tempos é importante revisitar os motivos que levaram não só a implantação destas leis mas também mobilizaram uma discussão sobre a importância da cultura no cotidiano da sociedade e a necessidade de valorização desses profissionais. 

Como campo de trabalho, a cultura foi um dos setores mais afetados pela pandemia. Desde março de 2020, artistas das diferentes linguagens, produtores e técnicos de todas as especialidades tiveram drástica redução de seus rendimentos ou perderam totalmente sua fonte de sustento. Com exceção de uma minoria ligada ao audiovisual e à música, ou daqueles que já realizavam trabalho de forma remota, os fazedores de cultura foram devastados pela pandemia.  

Como um “tsunami”, a exigência de quarentena pela COVID19 fechou palcos, cinemas, rodas de samba e bailes. Porque o artista, em “formato presencial”, é um “aglomerador”, um elemento que atrai e organiza a vivência coletiva, ainda que de maneira efêmera. 

O que não significa que a população tenha deixado de consumir cultura, ao contrário. De acordo com uma pesquisa realizada em maio e junho de 2021 pelo Itaú Cultural e pela DataFolha em todo o país, publicada no Folha de São Paulo em agosto daquele ano, “O percentual de pessoas que via apresentações de teatro, dança e música online passou de 9% antes da pandemia para 40%. No entretenimento e espetáculos infantis, foi de 8% para 23%.” Nunca os bens ou serviços culturais foram tão necessários, e não apenas para conseguirmos lidar com a inusitada situação de isolamento social, nutrindo nosso imaginário com criatividade, alimentando nossas reflexões, conectando-nos aos demais pelo canal da sensibilidade. A cultura tem sido o oásis simbólico que nos permite lidar com as muitas perdas e atravessar, sem enlouquecer, o mar de mortes que se tornou este país. 

Cultura // necessidade

Mas, bem, “cultura” é uma palavra traiçoeira e nem sempre estamos nos referindo à mesma ideia. Para além de um campo de trabalho, penso a cultura de um modo amplo, não apenas considerando as linguagens artísticas, mas todo o sistema de valores, crenças, tradições, incluindo os artefatos produzidos, ou seja, a maneira como cada grupo social se relaciona com a realidade. Vista assim, a cultura é então uma necessidade humana de apropriação e expressão simbólica, sentido de pertencimento e forma de comunicação de um humano com outro. Cultura como compartilhamento da experiência de mundo. 

Cultura // direito

Reconhecida enquanto necessidade humana, a cultura é, portanto, um direito de todos. E aqui vale lembrar, como diz Marilena Chauí (2016), que os direitos culturais vão muito além da fruição, que é o direito de assistir, como público, a alguma manifestação cultural. Estamos falando do direito de produzir cultura, do direito de ter a produção legitimada e apoiada financeiramente pelo Estado, e ela poder circular por toda a sociedade; o direito de ter as informações, o acesso e a formação necessária para bem aproveitar oportunidades e vivências culturais, e, ainda, o direito de participar da elaboração das políticas culturais, definindo coletivamente prioridades e orçamentos. Cultura como inserção na vida da cidade, exercício de cidadania.

Políticas culturais

A cultura constitui então uma das áreas que merece atenção e investimento público, já que, além de ser um direito de todos os cidadãos, é também um importante setor da economia. Na cidade do Rio de Janeiro, são relativamente recentes os processos de elaboração das políticas públicas nessa área: temos uma grande fragilidade institucional, ou seja, pouca estruturação regulamentada e muita descontinuidade. Temos um Conselho Municipal da cidade do Rio por vezes desconsiderado, tanto pelo poder público como pela própria sociedade da capital; temos uma lei relativa ao Fundo Municipal, aprovada no final de 2020, ainda não implementada na prática, e não temos até hoje um Plano Municipal, que deveria direcionar as políticas culturais pelo prazo de dez anos. Muito a construir.   

Para que representem benefícios de qualidade para os cidadãos, com uma despesa criteriosa dos recursos públicos, as políticas públicas de cultura, como em qualquer outro setor, precisam estar bem fundamentadas em dados da realidade. É preciso ter informações sobre o número de pessoas que trabalham nesse campo, com quais linguagens ou tipos de atividades, para quais públicos. É preciso saber onde os profissionais atuam e onde estão as pessoas que podem se beneficiar dessas atuações. É preciso que exista infraestrutura para a sua execução, seja em equipamentos, como teatros, centros culturais, museus, bibliotecas, cinemas, etc., seja quanto às condições para a realização das atividades em locais públicos, como ruas, praças e parques. Então também é necessário que o poder público disponha de informações relativas a esses espaços. 

Ocorre que há um grande desconhecimento por parte da população e dos próprios fazedores de cultura de como se constroem as políticas culturais. Até pouco tempo atrás, poderíamos dizer que tal desinformação atingia até mesmo os gestores públicos. As ações e os investimentos eram decididos antes a partir de relacionamentos e de demandas pessoais do que por um planejamento baseado na realidade. Até porque as informações sequer existiam. Vivíamos, na cidade do Rio de Janeiro, o que se costuma chamar de “deserto de dados”.

Mas essa situação vem mudando. Seja porque a redução das verbas, anterior à pandemia, já vinha frustrando artistas, técnicos e produtores, seja porque tem mais agentes participando ou querendo participar das decisões, seja porque houve um crescimento nos estudos sobre políticas culturais, podemos dizer que é consenso a necessidade de políticas mais satisfatórias. Isso exige aumentar o orçamento para o setor, é claro, mas também exige que elas sejam melhor estruturadas, elaboradas a partir de dados, e preferentemente de forma participativa – gestores, pesquisadores, técnicos, artistas, professores de artes, pessoas interessadas em aprimorar o apoio público à cultura na cidade.  

Indicadores

Informações como o número de ingressos vendidos em uma sessão de circo ou a remuneração mínima para um contrarregra, o número de salas de espetáculo por bairro ou o público que frequenta um museu, são indicadores fundamentais para a criação de políticas. Eles também são necessários depois, para o monitoramento e a avaliação das políticas criadas. E são importantíssimos no relacionamento do poder público com a sociedade, pois é por meio deles que os gestores poderão prestar contas do que foi realizado; é através do acompanhamento dos indicadores que podemos fazer um controle social daquilo que é de todos. 

Diagnóstico

A pesquisa que estamos realizando sobre a situação cultural da cidade do Rio de Janeiro foi uma iniciativa do Centro Latino Americano de Estudos em Cultura (CLAEC) em parceria com o Observatório das Metrópoles e o IPEA. A proposta envolve analisar a aplicação, no município, da lei emergencial para a cultura promulgada em 2020, a lei Aldir Blanc (LAB). Além dos registros municipais da LAB, cedidos pela Secretaria Municipal de Cultura da cidade do Rio, desenvolvemos coletivamente um questionário.

Elaborado com a participação dos pesquisadores e de vários agentes de distintos territórios, que trabalham com diferentes linguagens artístico-culturais, o instrumento foi aplicado entre setembro e outubro de 2021 . As questões apresentadas qualificavam os agentes culturais, suas atividades e públicos, e buscavam levantar sua relação com as políticas culturais vigentes e os mecanismos de participação, além de solicitar sugestões. A partir desse material, somado a uma série de entrevistas que fizemos, teremos um conjunto robusto de indicadores que irá permitir uma melhor visualização do campo da cultura na cidade. Já publicamos alguns resultados, relativos à análise do Inciso II da LAB.

Estamos trabalhando para finalizar esse estudo e compartilhar os resultados desse diagnóstico, na esperança de que as informações sirvam a novos estudos e à elaboração de políticas mais democráticas e participativas. 

 **Veronica Diaz Rocha é nascida na Costa Rica, vive no Rio de Janeiro; é Artista, Produtora cultural e Pesquisadora na área de políticas culturais, associada ao Centro Latino-Americano de Estudos em Cultura (CLAEC) e à Escola de Estudos Latino-Americanos e Globais (ELAG).Tem especialização em Gestão Cultural e em Administração Pública, mestrado pelo programa de pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, da UERJ, onde atualmente cursa o doutorado.  Ministrou cursos de produção cultural e oficinas de artes integradas; como consultora orientou mais de 30 projetos culturais comunitários. Desenvolve pesquisa sobre cultura, territórios e orçamento, com foco nas desigualdades presentes nas políticas culturais.

Referências

CHAUÍ, M. Uma opção radical e moderna: Democracia cultural. In A. Rubim, (Org.) Política cultural e gestão democrática no Brasil. pp. 55-80. São Paulo, Brasil: Fundação Perseu Abramo, 2016. FREIRE, V. T.  Experiências online durante pandemia criam público novo para a cultura. Folha de São Paulo. Publicado em 19 ago 2021. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2021/08/experiencias-online-durante-pandemia-criam-publico-novo-para-a-cultura.shtml, acesso em 16 nov. 2021.

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