Por Liliane Brum*
O SUS – Sistema Único de Saúde, uma das maiores conquistas do povo brasileiro, inscrita na Constituição de 1988 e regulamentada pela Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/1990), vem sofrendo impactos perversos desde a aprovação da Emenda Constitucional 95, mais conhecida como PEC da Morte.
Com isso, a já tão combalida saúde pública no Rio de Janeiro, entrou na UTI. E com ela milhares de fluminenses têm experimentado as graves consequências oriundas do projeto federal que em nada está preocupado com a saúde da população.
Mais grave ainda são as consequências na vida das mulheres. Somos mais de 50% da população brasileira e, no estado do Rio de Janeiro, esse número mantém o padrão nacional, oscilando entre 51% a 52%. Em um contexto de caos na saúde pública, onde somos a maioria, somado com o fato de que o papel social do cuidado é sustentado pelo patriarcado e isenta os homens desse lugar, o impacto é ainda mais violento e pernicioso.
Há tempo nosso estado responde por altas taxas de morte materna e, segundo dados de 2016 do SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade), nas que ocorreram no município do Rio, 75% das mulheres eram pretas e pardas e a maioria da Zona Oeste e Zona Norte.
Se olharmos para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que concentra mais de 60% da população fluminense, a situação do Sistema Único de Saúde é ainda mais crítica. Em Belford Roxo, no âmbito da atenção obstétrica, não existe serviço conveniado ao SUS. Assim como nesse município, toda a região é afetada pela precariedade do acesso, por serviços conveniados de baixíssima qualidade, por falta de transporte seguro para as gestantes de alto risco, pela falta de composição de uma rede que integre a já baixa cobertura da Atenção Básica – onde as mulheres deveriam iniciar seu pré-natal – com a média e alta complexidade, pela falta de um sistema de regulação integrado entre os serviços federais, estaduais e municipais… falta de insumos…falta de profissionais…falta de identificação precoce de doenças infecciosas e de transmissão vertical, como HIV e sífilis. Essa última patologia, inacreditavelmente, tem no Rio de Janeiro uma das mais altas incidências do país.
E poderíamos citar ainda tantas outras questões implicadas nesse processo, pois a crise financeira somada ao congelamento dos gastos públicos por 20 anos decretam a morte da saúde pública. Mas, entre as questões mais graves encontra-se outro fato alarmante, o aborto inseguro é a terceira causa de morte materna no estado, algo gravíssimo e que denuncia tanto a falta de proteção à vida das mulheres, quanto o crime de o estado não nos reconhecer como sujeitos de direitos.
No Rio de Janeiro, segundo dados de pesquisa da FGV/DAPP, entre 2013 e 2016 foram praticamente 2 atendimentos por dia de mulheres vítimas de estupros em serviços de saúde, sendo que 38,3% dos casos em meninas menores de 14 anos. Para completar o quadro: 21% dos estupros foram coletivos. A grande maioria dessas mulheres não procurará uma DEAM (Delegacia de Mulheres) e nem mesmo o serviço de saúde por falta de informação, vergonha, culpa e, não raramente, medo. Sim, medo de serem denunciadas e presas, embora o código de ética profissional preconize o sigilo e o cuidado.
Todo mundo já sabe, não é novidade: mulheres ricas abortam em clínicas seguras, e vivem! Mulheres pobres recorrem às clínicas que operam na clandestinidade, muitas vezes sem as mínimas condições de realizar um procedimento, muitas morrem ou carregam sequelas tremendas para o resto da vida.
A luta contra a PEC 181, que ano passado mobilizou as feministas de todo o Brasil e ficou conhecida como a PEC do Cavalo de Tróia por esconder atrás de uma importante demanda das mulheres – o aumento do tempo de licença maternidade para mães de bebês prematuros -, a tentativa de tutela do estado brasileiro sobre o embrião com o argumento de defesa da vida desde a concepção; tem como principal consequência da sua aprovação o retrocesso de um direito conquistado desde 1940, o aborto legal em casos de estupros ou risco de morte, mas também o direito à interrupção da gestação em casos de anencefalia. É uma mensagem muito nítida: quem decide sobre as políticas públicas relacionadas às mulheres não está se importando com a autonomia reprodutiva das mulheres! Daí a grande importância das mobilizações populares em torno do tema, como a do “Todas Contra 18!” no Rio de Janeiro e em todo país, que conseguiu barrar provisoriamente essa PEC absurda. Precisamos continuar atentas e mobilizadas!
Para concluir essas poucas linhas, quero fazer aqui minha homenagem à vereadora Marielle Franco, violentamente assassinada no dia 14 de março, mulher extraordinária e que representava muito para a caminhada rumo à conquista da plena cidadania por parte das mulheres cariocas. Feminista completamente comprometida com a nossa luta e que teve entre suas prioridades, durante seu curto e intenso mandato, um olhar especial para a saúde integral das mulheres. Em apenas um ano ela apresentou 13 Projetos de Lei na Câmara dos Vereadores. Entre esses, alguns especialmente importantes para a agenda da saúde das mulheres, como o PL 0016/2017 “Pra Fazer Valer o Aborto Legal no Rio”, que visa a obrigatoriedade do atendimento, já que a grande maioria das mulheres desconhece que, desde 1940 o aborto é legalizado pela justiça em casos de estupro e risco de morte para a mulher e, desde 2012, em casos de feto anencefálico. Portanto, se é legal tem que ser real, como dizia Marielle!
Outro PL de Marielle é o 0265/2017 sobre Casas de Parto, de fundamental importância para a humanização da atenção ao parto e nascimento. Hoje, apenas 1 casa de parto existe na cidade do Rio de Janeiro, a casa David Capistrano e, nela a gestante recebe atendimento integral, com respeito ao seu protagonismo e autonomia. Marielle queria muitas casas como essa em funcionamento!
E, quem não viu a cidade do Rio de Janeiro ser inundada pela Campanha “Não é Não!” desenvolvida no âmbito do PL #AssédioNãoÉPassageiro, em resposta às denuncias de que a cada 16 horas uma mulher sofre assédio em algum transporte público no Rio de Janeiro? Foi para enfrentar essa violência machista e misógina que Marielle propôs esse PL, como tantos outros.
Sim, Marielle vive em cada uma de nós, em cada PL que apresentou e pelos quais lutaremos para que sejam aprovados e implementados. Marielle foi e é sinônimo de resistência! E, como diz a musica do grupo ÉPreta:
“Nêga, a gente não vai dar descanso,
Não vai fechar pra balanço,
Nem pensar em pisar manso nesse ovo de serpente,
De coragem a gente entende!
Nêga, escuta! A gente não vai sair da luta”!!!
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* Liliane Brum Ribeiro é antropóloga e ativista da Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB e da PartidA Feminista. Atua como coordenadora de Projetos na Rede de Desenvolvimento Humano – REDEH. Foi Assessora Técnica do Ministério da Saúde/Área Técnica de Saúde da Mulher, contribuindo na construção e implementação de Políticas Públicas relacionadas à saúde sexual e saúde reprodutiva de mulheres jovens e adolescentes e à Rede de Atenção Integral às Mulheres em Situação de Violência.