*Por Inahra Cabral
“No momento do meu nascimento dois fatores determinaram o meu destino, ter nascido negra e ter nascido mulher” bell hooks
Hoje, 25 de Julho, é um dia especialmente importante para nós, mulheres negras. É mais do que um dia de celebração à nossa força e resistência, é dia de reflexão sobre nossas lutas passadas e como nós, com toda a nossa diversidade, conseguimos encontrar na união, força e esperança para a nossa luta continua.
Foi na República Dominicana, que aconteceu o primeiro encontro de mulheres negras. Esse momento de união e coletivização das dores e lutas fez com que a Organização das Nações Unidas (ONU) firmasse, em 1992, o dia 25 de Julho como o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha. Já no contexto brasileiro, esse reconhecimento foi mais tardio. Cunhada em 2014, a Lei 12.987 firmou essa data como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Reconhecer Tereza, mulher quilombola, liderança na luta contra a escravização dos povos negros, foi um passo importante em um país que tem dificuldade de trazer para os espaços de destaque as heroínas negras nacionais.
Para mim, mulher negra e cria da Maré, um dos maiores conjuntos de favelas da América Latina, esse dia singularmente me remete à história de luta e mobilização do meu território. As reformas urbanas e movimentos de remoções que aconteceram no Rio de Janeiro, em diferentes governos, se embasaram em discursos sanitaristas para justificar a expulsão da população negra e pobre do Centro e de outras regiões ditas privilegiadas da cidade. Esse discurso higienista aliado à lógica de expansão industrial para o subúrbio fez com que a região da Maré começasse a ser densamente ocupada a partir da década de 1940.
Porém, como o próprio nome já indica, a região era tomada por maré e mangue e as populações expulsas de outras regiões da cidade tiveram que enfrentar todas as dificuldades que foram e são viver sem as condições mínimas de salubridade. Imagina estar rodeado por água, mas não ter água potável dentro de casa para higiene básica, beber e fazer comida. Nesse contexto, no início da década de 1980 surge na Maré a Chapa Rosa, primeira chapa eleita para Associação de Moradores liderada por mulheres mareenses que pautavam melhores condições sanitárias e a canalização da água potável. É importante ressaltar que foi a partir das pressões da Chapa Rosa que as primeiras medidas públicas foram tomadas através do Projeto Rio e do Proface, cujas obras foram concluídas com bastante atraso, pressão dos moradores e algumas soluções construídas foram ineficientes.
A luta por direitos básicos, como ao saneamento, é historicamente liderada por mulheres na Maré e hoje, com o crescimento contínuo da população mareense, as infraestruturas de saneamento mal construídas na década de 1980 não dão conta da Maré densa dos dias atuais (cerca de 140 mil habitantes – Censo Maré 2019), fazendo essa luta ser ainda muito atual. O saneamento básico se refere a quatro serviços fundamentais para a garantia do bem viver, são eles: abastecimento de água potável, coleta e tratamento de esgoto, coleta e tratamento de resíduos sólidos e drenagem urbana das águas pluviais. Na Maré, temos problemas crônicos em todas essas quatro áreas. Além de lidar com a falta de direito ao saneamento, a população mareense ainda lida com ilhas de calor e poluição atmosférica, por estar entre e atravessada pelas principais vias expressas da cidade e por ser uma região historicamente de interesse industrial. Essas desigualdades em condições ambientais e sanitárias afetam majoritariamente as mulheres negras e hoje nomeamos de racismo ambiental.
Dando continuidade a história de luta por saneamento e meio ambiente saudável, o LUTeS (Lutas Urbanas, Tecnologia e Saneamento) é criado em um contexto de pandemia do coronavírus, a partir da união de Organizações da Sociedade Civil com grupos de extensão universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde de 2021, o LUTeS tem uma atuação continuada na Maré pautando o histórico de luta e o racismo ambiental, mas também propondo soluções sociais e ecológicas de saneamento e clima através da educação ambiental em um Colégio Estadual na Favela Nova Holanda. O LUTeS é coordenado por duas mulheres negras mareenses, eu e Gabriela Ferreira, que junto com outros jovens mareenses e uma equipe transdisciplinar já instalamos os dois primeiros biodigestores na Maré, tecnologia social e ecológica de saneamento, transformando os restos orgânicos em gás de cozinha e biofertilizante e autogeridos pela comunidade.
Mulheres negras da Maré estão liderando espaços de incidência política em saneamento, estamos construindo biodigestores, pensando em soluções ecológicas, estamos nos fóruns de saneamento territoriais e internacionais e na construção da Carta de Saneamento da Maré. Iniciei com bell hooks e finalizo com Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
*Inahra Cabral é arquiteta e urbanista pela UFRJ, cria da Maré e de Ramos, ativista pela justiça ambiental e climática, associada da ONG Germinal ATE, coordenadora e educadora ambiental do Coletivo LUTeS e liderança formada em políticas públicas pela Casa Fluminense.