Viver é Transcender

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Texto por
Comunicação Casa
Data
28 de junho de 2024

Por Francisco Espírito Santo

Eu, Francisco, sempre procurei estar presente na vida das pessoas ao meu redor, buscando compreender suas angústias e dificuldades nos diversos lugares onde vivi. Desde cedo, percebi a escassez de recursos financeiros e a falta de acesso à educação entre muitos dos meus familiares. Trabalhar sempre foi prioridade, ao contrário de estudar, cuidar da saúde ou ter acesso à cultura, aspectos que estavam distantes do cotidiano familiar.

Meus questionamentos giravam em torno da necessidade de assegurar que todas as pessoas, independentemente de sua origem socioeconômica, gênero, etnia ou orientação sexual, tenham acesso equitativo às oportunidades e recursos fundamentais como educação, saúde, moradia digna e emprego. Além de ser uma questão de direitos humanos fundamentais, a redução das desigualdades é crucial para fomentar o desenvolvimento sustentável e promover a coesão social, construindo uma comunidade mais resiliente, inclusiva e próspera para todos os seus membros.

Fui criado por minha avó que  costumava dizer que os problemas precisam ser enfrentados e não ignorados, por isso ela era a matriarca da família. Todos os desafios e imbróglios da família eram discutidos em volta de uma roda com café ou ao redor de suas três Antárticas bem geladas no início da noite. Era a mulher mais sábia que já conheci até hoje. Ser criado por minha avó constituiu em minha vida uma experiência singular e significativa, permeada por um afeto profundo e uma orientação que se destaca na minha formação pessoal. A subjetividade envolvida nesta dinâmica familiar engloba um cuidado amoroso aliado à sabedoria acumulada ao longo dos anos. 

Quando me reconheci como parte da sigla GLS, sim, sou dessa época. Eu queria ser aliada. Era mais fácil e menos opressivo. Já como uma mulher lésbica masculinizada, busquei durante anos minha feminilidade, tentando encontrar em mim a mulher que todos viam, menos eu. Todos os estereótipos que objetificam mulheres negras se aplicavam a mim. Me sentia violado dentro de casa e fora dela, porque aquilo não era quem eu era, e ainda era obrigado a enfrentar violências de gênero. No entanto, naquela época eu não tinha consciência de nada. Racismo, LGBTfobia, misoginia, e até mesmo questões de classe, passavam despercebidas por mim. Ao pensar nisso, me leva de novo à minha avó. Ela adorava música e passávamos horas ouvindo seus discos. Entender como essa cultura escravocrata nos esmaga não pode ser descrito de forma melhor que a música de Cartola nos revela:

“Ouça-me bem, amor

Preste atenção, o mundo é um moinho

Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos.

Vai reduzir as ilusões a pó”

Desde muito cedo, com minha independência, sempre fiz minhas próprias escolhas e decidi ignorar a cultura escravocrata colonial capitalista, buscando apenas sobreviver como toda a minha família. As tentativas fracassadas de conseguir uma vaga em universidades públicas e o alto custo das universidades privadas foram exaustivas e frustrantes.

Aos 34 anos, percebi que não poderia mais permanecer à margem do sistema colonial capitalista. Esse momento representou uma espécie de despertar, comparável à trechos do livro “Matrix” ao citar a  nave Nabucodonosor, com a referência bíblica do versículo Marcos 3 versículo 11, que diz: Sempre que os espíritos imundos o viam, prostravam-se diante dele e gritavam: “Tu és o Filho de Deus”. Significando perceber o verdadeiro eu de que você está acima deste corpo físico. A partir dessa reflexão, a filosofia europeia passou a exercer uma influência significativa em minha consciência. Reconheci a importância de espaços públicos, como praças, onde é possível dialogar, trocar ideias e colaborar na construção coletiva de nossos territórios. Os princípios abordados na obra “A República” de Platão ilustram vividamente como divergências entre suas ideias e as políticas neoliberais contemporâneas poderiam potencialmente gerar tensões significativas.

Quando ingressei no curso de Psicologia, após tentar três graduações privadas e compreender as razões por trás dos inúmeros traumas, perturbações e angústias enfrentados pela maioria minorizada que permeiam minha família, recordo-me vividamente de minha primeira aula, na qual a professora discutiu o complexo de Édipo. Naquele momento, questionei-me: “Isso eu já sei, mas como posso fazer meu cliente perceber isso?”

Acredito que o estudo da Psicologia requer uma compreensão profunda das pessoas dentro de seus contextos sociais, onde as feridas deixadas pelo “moinho” da vida cotidiana muitas vezes não cicatrizam. Foi nesse contexto que decidi me engajar como militante e ativista dos Direitos Humanos. De maneira inesperada e inexplicável, fui chamado para participar de uma campanha, desde então, tenho atuado ativamente nesse papel.

Aos trinta e sete anos, afirmei minha identidade de gênero masculino, ciente de que muitas pessoas que amaram Ana Carolina não aceitariam Francisco da mesma maneira. Sabia que não seria recebido em suas casas ou círculos de amigos. No entanto, herdei dela todo o legado de construções que me presenteou. Ao afirmar minha existência como transmasculino, percebi que meu corpo é político e que posso ser um agente facilitador para outros como eu. Atualmente, ocupo o cargo de Coordenador no Ibrat-RJ (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades), colaboro com a Liga Transmasculina Carioca João W. Nery e o Fonatrans (Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros). Sou um homem do axé, filho de Oxossi com Iansã, raspado, adochado e catulado há 22 anos, além de atuar como conselheiro na minha casa, Egbé Iyá Omi, que é meu quilombo. Estou cursando o sétimo período de Psicologia, sou terapeuta floral e tenho profundo amor pela humanidade. Continuo em constante construção de minha identidade negra, buscando viver e transcender a masculinidade.

*Francisco Espírito Santo homem trans, 40 anos, preto, oriundo do subúrbio do Rio de Janeiro, terapeuta holístico, psicólogo em formação,  Coordenador do IBRAT-RJ (Instituto Brasileiro de Transmasculinidade, regional do Rio de Janeiro). Militante dos Direitos Humanos e Cidadania, Racialização ou Etnização de pessoas Pretas, Diversidade e LGBTQIA+. Integrante do FONATRANS (Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros). Ebamy Conselheiro da casa Egbé Iya Omi Àti Obalùiyè-.

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