*Por Paola Lima
A honra masculina durante o Brasil colônia era um bem jurídico protegido pela legislação da época. Em caso de adultério, era concedido ao marido o direito de matar a sua esposa. Essa lei caiu quando veio o Código Criminal do Império em 1830 mas isso não significou o seu fim. Para se ter uma ideia, décadas depois, em 1976, o Brasil inteiro se chocou com o feminicídio que ocorreu na em Armação de Búzios, Região dos Lagos do Rio de Janeiro: o caso Ângela Diniz. Além da brutalidade do crime, chamou atenção na época como a tese de “legítima defesa da honra” foi não só utilizada pela defesa do agressor como também foi acolhida pelo juiz.
Do Brasil colônia até 2023, o direito brasileiro acolheu – ora em lei ora em estratégia de defesa- essa herança colonialista que arruma formas de justificar a violência sistêmica e histórica contra as mulheres. Isso só está mudando agora, séculos depois. No dia primeiro de agosto, o Supremo Tribunal Federal acatou o pedido do Partido Democrático Trabalhista (PDT) para que se declarasse a impossibilidade jurídica de invocação da tese de legítima defesa da honra. Ou seja, na prática, não é mais permitido que a honra seja justificativa para feminicídio ou agressão contra a mulher.
Essa mudança estava em discussão desde 06 de janeiro de 2021, quando o PDT ajuizou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF sob o argumento de que a tese da “legítima defesa da honra” feria o direito da dignidade humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero, todos previstos na Constituição Federal. O partido pediu para que o Supremo conferisse interpretação conforme à Constituição aos artigos 23, II, e 25 do Código Penal e o artigo 65 do Código de Processo Penal.
Mas o que é Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental?
É uma ação proposta diretamente no Supremo Tribunal Federal com o objetivo de evitar ou reparar lesão aos direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição, resultante de ato do poder público como por exemplo decisões de tribunais de júri e tribunais de justiça pelo Brasil.
E nas periferias?
Apesar da decisão do STF, as mulheres de periferia vão continuar sem ter acesso ao judiciário, isso porque a tese já não atingia elas de forma jurídica, mas de forma social. Muitos são os casos em que a mulher sofre algum tipo de agressão e a própria sociedade – antes mesmo do poder judiciário- faz o papel de juiz e aplica a sentença moral de legítima defesa da honra em favor do agressor. Quantas histórias como essa não conhecemos? Quantos comentários relativizando e tentando achar justificativas para o injustificáveis já não ouvimos? A verdade é que as mulheres nunca estão livres do julgamento da defesa da honra diante da sociedade, não são livres em relação a sua sexualidade, ao exercer seus direitos e sobretudo mulheres pretas e periféricas, não são livres para decidir se querem judicializar os casos ou não. Em muitas áreas a justiça não chega, não entra e nem elas podem sair.
Caso Salgueiro, São Gonçalo
Uma vez recebi uma mensagem no meu WhatsApp: “Paola, meu companheiro chutou minhas pernas, estou cheia de marcas roxas, o que eu faço?”. Isso foi no meio da semana. Quando li a mensagem me perguntei inúmeras vezes o que eu poderia fazer por aquela mulher. Uma amiga muito querida, mas que mora em um local em que a polícia não entra para garantir direitos, pelo contrário, só entra para matar.
Conversei com ela sobre os locais que ela poderia ir sem envolver o poder judiciário. Equipamentos públicos, defensoria, mas mesmo assim o acesso é difícil. A solução foi encorajá-la e mandá-lo embora. No caso dela, o companheiro agressor foi embora e ela pode contar com o apoio da família. Mas e quando a vítima não tem o apoio familiar, não tem condições de se bancar sozinha?
Os auxílios que o poder público oferece tem como principal requisito o registro de ocorrência. Se ela quiser auxílio financeiro, tem que ser mediante BO, se quiser a proteção da Casa Abrigo, tem que ter BO. É diante disso que a gente consegue entender que a Lei Maria da Penha foi um grande avanço no mundo jurídico é inegável, mas também precisamos entender a quem essa Lei consegue acolher na prática.
Por exemplo, em 2022, um em cada quatro casos de feminicídio no Rio de Janeiro aconteceu na Baixada Fluminense. Os dados são do boletim anual “Feminicídios e Segurança Pública na Baixada Fluminense”, divulgado pela organização Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR).
Foram registradas 110 mortes por feminicídio no estado no último ano. Do total, aproximadamente 24% aconteceram na Baixada Fluminense.
Esses dados mostram a importância das organizações da sociedade civil que trabalham com a conscientização acerca de direitos, políticas públicas e caminhos alternativos ao judiciário para que as mulheres que moram em favelas e periferias comecem a ter oportunidades para decidir sobre como irão proceder em casos de violência. Foi diante desse cenário que surgiu o Projeto Lilás. Com atuação em São Gonçalo, o Lilás trabalha com a orientação jurídica, apoio e acolhimento a mulheres vítimas de violência doméstica, que por alguma razão, não encontraram uma saída quando se deparam como uma situação de violação de seus direitos.
O projeto foi criado em 2020, em um período pandêmico, e a partir disso foi estabelecendo raízes através de roda de escuta e muito também por atravessamentos pessoais em que passei dois anos antes. Fui vítima de um relacionamento abusivo e sei bem como é olhar para o espelho e não saber mais quem era.
A violência não só objetifica a mulher, mas retira a humanidade dela e posteriormente a isso, qualquer coisa pode acontecer. Por essa razão, o STF foi assertivo em decidir sobre extirpar por completo a tese do mundo jurídico, a fim de que mulheres como eu e tantas mulheres da metrópole do Rio, caso optem e consigam judicializar suas agressões, não se deparam com justificativas jurídicas de que a culpa por ter sofrido agressões foi ela mesma. Dá para dizer que começamos esse agosto lilás com mais esperança e atenção ao tema.
*Paola Lima, cria de São Gonçalo, advogada, assessora de mobilização da Casa Fluminense, diretora de projetos do Espaço Gaia e Idealizadora do Projeto Lilás.