Muito além da tarifa, debates sobre financiamento do transporte abrem caminho para garantia do acesso

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Texto por
Luize Sampaio
Data
29 de maio de 2020

A pandemia do novo coronavírus mudou a forma das cidades girarem. A principal preocupação agora é a preservação da vida e a garantia da continuidade do acesso à saúde e à educação, direitos assegurados a todos pelo artigo 6º da Constituição Federal. Esses direitos sociais devem ajudar a criar condições básicas de igualdade para todos e, sua função fica ainda mais evidente durante crises como a que estamos vivendo. Recentes tentativas de garanti-los foram as propostas de virtualização do ensino e a criação dos hospitais de campanha, porém muito tem sido discutido sobre os limites de acesso dessas alternativas para uma grande parcela da população já vulnerabilizada.

Em 2015, o acesso ao transporte entrou para a lista de direitos sociais básicos. Ainda que atrasada, a emenda constitucional 90/15 garantiu que, assim como a saúde e alimentação, o transporte tem que ser acessível e abrangente a toda a população. Mas de que forma isso é realmente aplicado?

Com o decreto de quarentena e a adoção oficial do isolamento social, a movimentação da população pela cidade caiu e um dos setores mais comprometidos foi o sistema de transportes. Entre as estratégias para conter  a disseminação do vírus, o governador Wilson Witzel determinou corte de 50% da lotação dos coletivos, uma medida seguida também pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella, que proibiu viagens com passageiros em pé. As restrições foram publicadas no Diário Oficial do Estado no dia 17 de março.

Passados oito dias deste decreto, no dia 25 de março, o presidente da Rio Ônibus, sindicato das empresas de ônibus da cidade do Rio, Cláudio Callak, veio a público afirmar que sem o apoio financeiro da prefeitura, eles seriam obrigados a parar a operação de ônibus na sexta-feira seguinte, dia 27 de março. Crivella, em seguida,  se pronunciou pedindo a compreensão das empresas. Os dois lados estão desde 2017 em uma batalha judicial. E, agora, os consórcios agora querem aumentar a passagem de R$4,05 para R$ 4,25. 

A reação das empresas já era esperada pela representante da campanha Embarque por Direitos, Cleo Manhas. A assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) acreditava que uma das movimentações possíveis das empresas seria recorrer ao governo em busca de recursos financeiros. Isso porque, segundo Cleo, o lucro dos consórcios de  ônibus está muito ligado às superlotações dos coletivos. Então, se agora existem medidas de esvaziamento, eles viriam reivindicar esses valores. Mas para ela, o dinheiro do governo precisa ser usado em outras áreas mais urgentes. 

“A conta sobre esse momento que estamos atravessando ia chegar. Eu pensei que fosse chegar depois do coronavírus, mas pelo jeito, já está chegando agora. Eu não acredito que eles (empresas de ônibus) não tenham condições de operar. Isso é pressão, uma pressão covarde para o  momento  que temos pessoas muito mais vulneráveis do que donos de empresas de ônibus, a exemplo dos próprios usuários do transporte coletivo. Temos os trabalhadores informais que vão ficar parados, como os ambulantes e as diaristas. Estas pessoas sim têm prioridade sobre o que o Estado vai oferecer agora e não as empresas de ônibus”, afirmou a especialista.  

Contudo, naquela sexta-feira, dia 27 de março, a circulação de ônibus na cidade do Rio não foi paralisada. Crivella se comprometeu a recorrer ao governo federal para conseguir recursos e manter as operações do sistema.  De acordo com a Rio Ônibus, os custos de operação do sistema de ônibus são cobertos exclusivamente pela tarifa paga pelo usuário. Se passagem é a única fonte de renda para manter a operação, isso significa que a roleta dita o valor?

O sindicato das empresas de ônibus disponibiliza no seu site uma fórmula criada em 2010, mesmo ano em que surgiu o bilhete único, usada para estipular qual deve ser o reajuste da tarifa a partir de 2011 em diante. Gastos com a mão de obra, diesel, pneus e “outras despesas” não listadas são alguns dos elementos incluídos nessa fórmula que podem baratear ou encarecer a passagem.

Os gráficos a seguir mostram que mesmo com a redução de gastos com variáveis que são a base para o cálculo do reajuste, como a  mão de obra que foi reduzida pela retirada dos cobradores, a tarifa na cidade do Rio não para de encarecer. Com base no dados do Data.Rio, entre os anos de 2010 e 2018, analisamos a série histórica sobre quantidade de trabalhadores nas empresas de ônibus, que aponta para a redução de 30,7% na mão de obra, caindo de 40.195 para 27.839 pessoas.

Como pode ser observado no gráfico abaixo sobre o número de ônibus em circulação  houve diminuição de 23% durante o mesmo período, o que representam 2 mil veículos a menos. O padrão de redução se manteve também no número de linhas e  consumo de diesel. O total das linhas caiu em 20%, de 925 para 731. Já o combustível consumido diminuiu em 15%.

As quedas apresentadas acima tiveram como efeito uma redução de 15% também no número de viagens realizadas anualmente. Os gráficos mostraram que a Rio Ônibus está tentando economizar as suas atividades mas, em meio a todas essas quedas, dois outros elementos importantes não pararam de aumentar. Primeiro o preço da tarifa, que em 2010 era de 2,40 reais, e chegou a 3,95 em 2018. Já o segundo é o crescimento no número de passageiros pagantes totais por ano que, no período analisado, aumentou 14%. O total de tarifas pagas passou de 860 milhões, em 2010, para 880 milhões no ano de 2018.

A partir dessa premissa, construímos alguns questionamentos sobre os aumentos que a passagem vêm sofrendo desde 2011. Abaixo é possível ver o peso que cada um desses números que apresentamos possui no valor final de reajuste da tarifa. Ao colocar na balança, fica claro que mesmo com o enxugamento do número de trabalhadores, linhas de ônibus, tamanho da frota e outros gastos, a passagem permaneceu aumentando junto com número de pessoas pagantes totais, que representam o número de anual de tarifas cobradas. Formulamos então os “poréns” que a fórmula da Rio Ônibus não explica.

O que acontece hoje na cidade do Rio é reflexo de um cenário comum nas cidades brasileiras em que  as operações de ônibus dependem exclusivamente da tarifa do passageiro para funcionarem. Para compreender este contexto, é importante identificar que o transporte dentro dos municípios e seu funcionamento são por lei (Constituição, Artigo 30, inciso V) competência das prefeituras. Ou seja, cada prefeito determina por quem e como a operação será feita, bem como o valor de reajuste da passagem. Segundo o diretor do  Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos (MDT), Nazareno  Stanislau, são em momentos de crise que essas designações mostram suas falhas.

“Atualmente, o município é um ente que não conversa com o estado que por sua vez não conversa com o governo federal. Cada um aponta  para um lado, por isso não tem uma política de transporte articulada. No ABC paulista, de cara quiseram suspender o transporte, já em Goiânia resolveram reduzir 30% (da frota) no horário de pico, gerando fila. O que as autoridades estão fazendo? Reduzem o número de ônibus, mas aumentam a aglomeração de pessoas no mesmo veículo. Aí você propaga o vírus muito mais do que se tivesse tudo normal e pudesse entrar em um ônibus vazio”, afirma Nazareno. 

Para o MDT, é preciso que haja diálogo das três esferas de poderes. O movimento  acredita que o primeiro passo é criar um sistema integrado, uma espécie de SUS do transporte que dê conta de agir em momentos de calamidade com a mesma eficiência que o Sistema Único de Saúde apresenta, mesmo em meio a falta de recursos.

 “Elaboramos o SUM, que seria o Sistema Único da Mobilidade, uma estruturação para o estado  prover o  transporte público. Porque perante a constituição, ele é igual a educação e saúde. O transporte público é um serviço essencial e direito social. Ele deveria ser tratado como  esse outros serviços. Cada parte (município, estado e federação) entraria com a sua etapa de contribuição assim como é na saúde, por exemplo. É por causa dessa organização do SUS que estamos enfrentando o coronavírus com um nível de qualidade médica superior a de outros países das mesmas dimensões, mas o transporte está uma bagunça”, explicou o diretor.

O peso do transporte no bolso

Uma pesquisa divulgada pelo IBGE no ano passado mostrou que a população brasileira  gasta mais com passagem e locomoção do que com comida, um dado alarmante que fortalece a discussão sobre a  implementação de  políticas de financiamento extra tarifário ou até mesmo programas de tarifa zero. Mas, para que esses cenários se tornem uma realidade é preciso buscar formas de financiamento que sejam capazes de pagar essa conta. 

Terminal Rodoviário João Goulart, terminal de ônibus urbanos municipais e intermunicipais localizado no Centro de Niterói. Foto: Léo Lima

Além de colocar o acesso ao transporte público no mesmo nível da saúde e educação, o Artigo 6º define que é do Estado a responsabilidade de promover políticas públicas de incentivo ao seu bom funcionamento. Isso abriu espaço para o surgimento de  leis e projetos voltados para o financiamento do transporte público . A campanha Embarque por Direitos busca a regulamentação dessa emenda, ou seja, a elaboração das diretrizes e normas sobre como aplicar essa inclusão.

“Antes da campanha, fizemos uma parceria com o Carlos Henrique Ribeiro, doutorando em economia pela Universidade de Brasília, para a elaboração de um estudo sobre o que seria um fundo de financiamento para o transporte. Não adianta nada o legislativo fazer uma lei que garanta a gratuidade ou então que mude a operação da tarifa sem antes olharmos para a questão orçamentária. Isso porque não existe adicionar uma despesa fixa dessa forma sem consulta e aprovação do PPA (Plano Plurianual), para dar um exemplo nacional”, explica Cleo. 

Como baratear o preço final das passagens? 

Os especialistas apontam que a criação de um fundo de mobilidade federal seria  o início para a diminuição das tarifas de ônibus e poderia ser composto por uma série de tributos e taxas. A Lei federal 12.587/12 , conhecida como Lei da Mobilidade Urbana, afirma que toda a receita referente a taxação das vias públicas, como a cobrança do pedágio urbano por exemplo, deve ser aplicada, exclusivamente, no subsídio das tarifas e nas infraestruturas dos modos não motorizados e do transporte público coletivo. Um fundo de mobilidade atenderia então ao cumprimento dessa diretriz. Segundo o diretor do MDT, é preciso também ficar atento para taxar setores que lucram diretamente com o transporte público sem dar nada em troca. 

“O fato do ônibus estar no congestionamento do automóvel faz com que ele custe 20% a mais para o usuário. A gente costuma falar que todo mundo é contra o pedágio urbano para o automóvel, mas e o pedágio urbano que o usuário do transporte paga? Vamos tirar recursos de quem se beneficia economicamente com o sistema de transporte. Existem  vários setores que se beneficiam e não pagam nada. Em São Paulo, só o aumento do IPTU em áreas que o metrô passa daria para subsidiar toda a obra desse transporte. No mundo inteiro hoje, não se faz sistema de transporte sem taxar o setor imobiliário”, exemplificou Nazareno. 

Os moradores de Queimados, município da Região Metropolitana do Rio, enxergam a criação de um fundo de mobilidade municipal como uma alternativa para colocar leis municipais já existentes em prática. Entre elas lei nº 1.355/17 e, que autoriza a elaboração de um bilhete único a nível municipal, e a lei nº 1.415/17,  que abre caminhos para que a Prefeitura  crie um bilhete único especial para os desempregados. Essas leis de 2017, desregulamentadas, foram “descobertas” por um grupo de alunos do curso de políticas públicas em Queimados, realizado pelo Ampara com apoio da Casa Fluminense  no último ano. Esse achado foi feito durante a produção da campanha Queimados Integrada, que tem como uma das metas a redução do custo das tarifas com a implementação do bilhete único municipal. Jorge Peixoto, um dos mobilizadores da campanha, conta como foi descobrir a existências dessas leis. 

“Nossa proposta na campanha Queimados Integrada mudou quando soubemos que já existiam essas leis. A ideia agora é complementar a lei que já fala sobre a criação de um  fundo de mobilidade, mas não especifica as fontes de financiamento. Isso deixa uma brecha para o Executivo dizer que não há dinheiro para fazer acontecer o B.U (bilhete único), o que inclusive pode ser verdade”, afirmou Peixoto. 

O grupo tem pensado em caminhos para o financiamento de um fundo de mobilidade para Queimados. Entre os tributos que pensam em reivindicar estão as taxas dos estacionamentos em locais públicos, a receita de propaganda nos ônibus e a alíquota do ISS (Imposto Sobre o Serviço),mas essa arrecadação ainda está na fase de ideias.  Operam na cidade duas empresas: Fazeni Transportes e Turismo Ltda e Gardel Turismo Ltda. Os ônibus são o principal meio de transporte público da cidade, que é dividida ao meio pela estação de trem. 

As diferentes realidades do transporte no estado do Rio de Janeiro

Ação promovida pela Casa Fluminense na Central do Brasil para defender transporte bom e barato para quem precisa. Foto: Kati Tortorelli

No boletim da Agenda 2030 sobre mobilidade, lançado pela Casa Fluminense no último ano, foi divulgado que uma pessoa que em torno de  um salário mínimo pode comprometer até 20% da sua renda com o uso diário de ônibus da cidade. Mesmo o transporte sendo um direito social garantido por lei, no município do Rio é o passageiro quem paga integralmente pelos custos do serviço de ônibus. 

 Contudo, em cidades vizinhas a capital fluminense, as prefeituras estão buscando outros caminhos. Em Maricá, por exemplo, foi instaurado a política da tarifa zero e a população tem o acesso gratuito garantido aos vermelhinhos (apelido dos ônibus municipais) desde 2013. Dois fatores principais contribuíram para isso, o primeiro é a questão principal de sempre: verba. A cidade é uma das que mais recebe recursos de royalties advindos da exploração de petróleo que acontece na sua costa. Esse dinheiro é usado para manter o programa de tarifa zero. O outro fator é a criação de uma empresa pública de transporte que tornou viável o projeto e acabou com um monopólio de empresas de ônibus que já durava mais de 40 anos em Maricá. 

Existem também outro município fluminense que conseguem garantir a gratuidade para toda a população e sem precisar dos royalties. Esse é o caso de Volta Redonda com o Programa Tarifa Comercial Zero iniciado em 2018. A cidade foi a primeira no Brasil a ter um ônibus elétrico público e hoje são 3 veículos que interligam os centros comerciais de Volta Redonda. A ideia é estimular o comércio aumentando a circulação de pessoas, o projeto foi desenvolvido em parceria com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo.

Essa é a primeira da série de reportagens sobre transporte. Na próxima, falaremos sobre dois assuntos muito importantes para a melhoria do sistema, que são a transparência e os processos de licitação. Acompanhe!

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