Mobilidade é mais que transporte

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Texto por
Comunicação Casa
Data
20 de outubro de 2016

Percorrer os quatro ramais de trem do Rio de Janeiro no horário de rush é acumular histórias de reclamações e muito desconforto. Acesso difícil às estações, filas e tumulto integram a rotina de quem necessita usar o transporte no dia a dia. O assistente administrativo Adhemar Fernandes, 31, conhece essa realidade de perto. Morador de Paciência, na Zona Oeste, o jovem já se habituou a acordar às 4h30m para chegar ao emprego, em Bonsucesso, na Zona Norte. A tarefa não é nada fácil: Adhemar pega um ônibus do BRT até a estação de trem do bairro, onde embarca no ramal de Saracuruna, diariamente lotado. Em seguida, desce no Maracanã e segue viagem pela linha Gramacho até Bonsucesso. “Os trens demoram de 10 a 15 minutos para chegar às estações. No horário de pico o conforto é zero, uma verdadeira guerra. Já até me acostumei com a rotina, mas uma integração tarifária entre os modais de transporte me ajudaria bastante”, desabafa ele que gasta R$15 diariamente.

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As grandes distâncias entre as áreas de moradia e emprego roubam árduas horas dos fluminenses. Moradora de Japeri, município da Região Metropolitana do Rio, a auxiliar de serviços gerais Nelma Pereira, 40, trabalhou durante dois anos em Ipanema, na Zona Sul. “Chegar no serviço era uma verdadeira aventura. Com sorte, eu demorava 3 horas, mas isso quase nunca acontecia”, conta ela. Em Japeri, cerca de metade da população (54%) perde mais de uma hora para ir de casa ao trabalho; na capital, esse número é de 26%. A expansão urbana mal planejada está afastando, cada vez mais, as pessoas de oportunidades de trabalho e forçando-as se inserir no mercado informal. “Desisti porque não valia a pena financeiramente e pelo desgaste. Agora vendo salgados na porta de casa e não tenho mais dores nas costas”, completa Nelma.

Pensando a cidade para reduzir deslocamentos

Longos deslocamentos tendem a gerar trânsitos congestionados, principalmente se o carro particular é o modal de transporte priorizado. Das 102 estações de trem da SuperVia apenas oito estão conectadas ao sistema de BRTs, cinco ao metrô e só sete contam com bicicletários. Facilitar o acesso a um sistema de transportes integrado e de alta capacidade é um dos oito princípios listados pelo Instituto de Políticas de Transporte & Desenvolvimento (ITDP) para definir o conceito de Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável, mais conhecido como DOTS. A ideia foi desenvolvida pelo norte-americano Robert Cervero, professor da Universidade de Berkeley, nos EUA, e especialista em transporte e urbanismo. O DOTS postula que governos e sociedade civil devem planejar cidades para que seus habitantes percam menos tempo se deslocando diariamente, especialmente de carro. Um dos caminhos para isso é expandir a malha de transporte público. Outro, equivalente a este porém mais barato, é adensar o entorno de estações de transporte de média e alta capacidade a partir da adoção de instrumentos de regulação urbanística que incentivem a ocupação mista desses espaços, com empreendimentos comerciais de moradia e lazer.

Para Iuri Moura, gerente de projetos de desenvolvimento urbano do ITDP, as grandes cidades e regiões metropolitanas sofrem atualmente com uma série de impactos negativos sobre o ambiente. “Nós temos um modelo de desenvolvimento que reforça a segregação e prioriza o transporte individual motorizado. O conceito do DOTS surge com o objetivo de reverter essa lógica”, explica.

No Brasil, a cidade de Curitiba foi pioneira na implantação de mecanismos de planejamento e controle para garantir que o desenvolvimento da cidade se dê de maneira orientada aos principais eixos de transporte, no caso, os corredores exclusivos de ônibus ou BRTs, solução adotada há mais de 40 anos pelo então prefeito Jaime Lerner. Mais de 200 cidades no mundo, segundo a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, contam hoje com alguma infraestrutura desse tipo. No Brasil, capitais como Belo Horizonte, Brasília, Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre, Recife, Uberlândia e Rio de Janeiro implantaram o modelo de BRT, mas o paradigma de pensar transporte e desenvolvimento urbano de forma indissociada ainda é algo distante do debate público na maior parte das cidades. A adoção de novas tecnologias de transporte não é acompanhada de um ganho de complexidade na reflexão sobre o sistema como um todo, deixando um rastro de aparente modernização, mas que não se traduz efetivamente na diminuição do tempo perdido no deslocamento casa-trabalho.    

No município do Rio, um projeto de revitalização do bairro de Bonsucesso, na Zona Norte, vai incorporar pela primeira vez os princípios do DOTS no seu desenho. O bairro, que fica entre os Complexos do Alemão e da Maré, foi escolhido pela proximidade com a Zona Portuária e por estar no trajeto previsto para a construção da Transbrasil. A área já serviu de centro industrial e conta com uma série de galpões vazios, apresentando, portanto, um alto potencial de adensamento. O ITDP está participando da elaboração do estudo, que consistirá em um plano de ação para estimular novos empreendimentos comerciais e de moradia no entorno da estação de trem. Entre suas propostas iniciais está a alteração do local da estação do BRT, cujo traçado seguiria a Avenida Brasil. A ideia é movê-la para o eixo da Avenida Paris a fim de conectá-la com a linha ferroviária, o Teleférico do Alemão, o campus da UFRJ e o Complexo da Maré. Outra recomendação é redesenhar as avenidas Paris e Guilherme Maxwell, que ganhariam ciclovias, calçadas largas e mais árvores.

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Além de Bonsucesso, o centro do município de Queimados também está sendo repensado à luz das ideias do Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável. A cidade foi escolhida pela proximidade com o Arco Metropolitano, a Rodovia Presidente Dutra e por ter a linha férrea como um dos principais modais de integração com as demais regiões da metrópole. O objetivo do estudo, que está sendo desenvolvido sob coordenação da Prefeitura e da Câmara Metropolitana de Integração Governamental, é fazer com o que o entorno da estação ferroviária deixe de ser apenas um local de passagem e se torne um polo de convivência. A recuperação da área atrairia novos moradores para a região, aumentando o número de pessoas vivendo num raio de distância da estação facilmente percorrível a pé ou de bicicleta, desincentivando o uso do automóvel particular. A licitação para escolher a empresa responsável pelo estudo já foi concluída e o vencedor deverá ser anunciado até o fim de outubro.

O desafio e a urgência da acessibilidade

É nos transportes de alta capacidade, como o ferroviário, que o Rio mais deixa a desejar, especialmente para quem é portador de necessidades especiais. Ricardo Martins, 59, depende da cadeira de rodas há 12 anos devido a um acidente de carro. Morador do Centro do Rio, o aposentado utiliza trem e metrô duas vezes por mês para ir ao médico, no Maracanã, onde atravessa a rampa que dá acesso ao Estádio. “Às vezes tenho que esperar alguns minutos até passar alguém. É duro precisar de ajuda para subir e descer”, diz ele, enquanto mostra que é impossível se locomover sozinho. Das 102 estações de trem, apenas 20 são acessíveis. As seis que levavam a alguma arena dos Jogos Olímpicos – São Cristóvão, Engenho de Dentro, Deodoro, Vila Militar, Magalhães Bastos e Ricardo de Albuquerque – foram completamente adaptadas com elevadores, painéis de informações e piso tátil. De acordo com a SuperVia, o projeto de reforma, que vai até 2020, custou R$250 milhões.

Nas Paralimpíadas a cidade passou imagem de inclusiva, mas o real acesso a direitos ainda é algo muito distante do dia a dia dos fluminenses portadores de necessidades especiais. O caso de Igor Lima, 21 anos, estudante e morador de Queimados vem ganhando notoriedade. Desde a infância em uma cadeira de rodas e aprovado no ano passado no vestibular de Direito da UERJ, ele está correndo risco de não conseguir frequentar as aulas: a estação ferroviária do município não conta nem sequer com rampa de acesso, tornando inviável seu deslocamento de maneira autônoma.

Igor entrou na justiça reivindicando que as obras de adaptação fossem feitas. Na primeira instância, a juíza deu um prazo de 180 dias para que a SuperVia concluísse as reformas e determinou que, enquanto isso, o Estado deveria custear um transporte alternativo ao estudante. Após receber o benefício e contratar a empresa privada, veio o susto: em segunda instância não só foi revogada a obrigatoriedade do pagamento, como a desembargadora responsável decretou que o estudante deveria devolver a verba já empregada no transporte alternativo. Junto com colegas da faculdade, Igor está levando sua história à opinião pública em um dos primeiros casos de judicialização da acessibilidade no Brasil, na esteira da promulgação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da sua regulamentação por meio do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em vigência desde o final de 2015. Uma vaquinha online foi organizada para ajudar o estudante a custear o transporte caso a decisão se confirme e o abaixo-assinado a favor da causa já conta com mais de 100 mil assinaturas.

Repensando prioridades

Nos últimos 25 anos, segundo a SuperVia, o Rio de Janeiro investiu R$1 bilhão na malha ferroviária. Se compararmos a São Paulo, por exemplo, a diferença é notória: de acordo com dados da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), eles receberam R$40 bilhões em recursos nesse mesmo intervalo de tempo. No Rio, as estações de Riachuelo, Sampaio, Engenho Novo, Silva Freire, Piedade, Quintino, Cascadura, Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro e Marechal Hermes seguem com problemas. As plataformas não têm proteção para sol e chuva, são mal iluminadas e não oferecem segurança aos passageiros. Nas estações São Francisco Xavier, Mangueira e Méier, as escadas rolantes não funcionam e outras estão em péssimo estado de conservação.

Enquanto isso, o Governo do Estado optou por investir R$ 9 bilhões na linha 4 do metrô, que liga os bairros de Ipanema à Barra da Tijuca, uma obra que pode atender no máximo 300 mil pessoas por dia. Somente o ramal de Santa Cruz atravessa um corredor com 4 milhões de pessoas. “É uma diferença substancial de benefícios, isto é, se tivéssemos investido R$5 milhões no ramal de Santa Cruz teríamos um benefício muito melhor distribuído socialmente”, comenta Pedro da Luz, presidente do IAB-RJ. 

Na década de 1960, o sistema de trens na cidade metropolitana do Rio chegou a transportar diariamente mais de 1 milhão de pessoas. Em 2012, segundo a SuperVia, apenas 450 mil passageiros andavam de trem todos os dias. Hoje esse número chega a 600 mil. Apesar dos ganhos recentes, a decadência histórica dos ramais de trem é inegável e reflete o baixo investimento e prioridade dados a um modal mais limpo e acessível. 

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