Debate: Ensino religioso na rede pública de educação

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Texto por
Marcelo Cabral
Data
28 de dezembro de 2014

Desde 2012, quando foi regulamentada lei sobre o ensino religioso em escolas públicas municipais do Rio de Janeiro, 171 delas incorporaram a disciplina às suas salas de aula. Uma medida que causa polêmica entre professores, entidades de classe, especialistas e religiosos sobre prioridades da Educação, laicidade do Estado, alocação de recursos públicos para o setor e respeito à diversidade cultural e religiosa dentro do ambiente escolar no Rio de Janeiro.

A lei de outubro de 2011, que implementou o ensino religioso nas escolas da rede municipal de Educação, partiu de uma iniciativa do executivo municipal. O prefeito Eduardo Paes enviou em caráter de urgência o projeto de lei para a Câmara de Vereadores, que aprovou a medida por 28 votos a favor e 23 contra. A lei entrou em vigor em 2012, quando a prefeitura realizou concurso e contratou 118 professores, hoje responsáveis pelo ensino religioso na maioria das 171 escolas de turno integral no Rio de Janeiro. Na esfera estadual da Educação, que contempla o ensino médio, uma lei semelhante foi aprovada no ano 2000, durante a gestão do ex-governador Garotinho.

O Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro – SEPE se posicionou contra a medida desde a votação na Câmara de Vereadores, em 2011. O professor de História Sergio Paulo, então coordenador do sindicato, lembra: “sempre tentamos convencer o poder público a não ceder ao lobby das bancadas religiosas, tanto católica como evangélica. O ensino de uma determinada religião não é obrigação da escola. Religião é um tema privado, familiar e comunitário. É claro que o Estado defende uma abordagem ecumênica desse ensino religioso, o que é muito bonito na teoria, mas não é o que acontece na prática, pois o professor de uma determinada denominação religiosa vai defender o ponto de vista da sua crença”.

Sergio Paulo é professor concursado e ministra aulas de história tanto na rede municipal como na rede estadual de ensino. O docente lembra que as escolas públicas no Rio de Janeiro ainda precisam superar uma série de desafios. “Desde a proclamação da República, começamos a separar o Estado da religião, para agora vivermos este retrocesso. Não concordamos com o investimento de recursos públicos em concursos e salários para professores de ensino religioso. Ao invés de investirmos em ensino religioso, precisamos contratar professores de matemática, geografia e outras disciplinas. Não faz sentido um aluno ter aulas de ensino religioso em uma escola que não tem professor de matemática. Políticos tentam fazer acordos com as bancadas religiosas, atendendo a este tipo de lobby, e destinando recursos públicos da Educação para atender demandas de religiões majoritárias. Deveríamos respeitar a tradição republicana de separação entre Igreja e Estado”.

O ponto de vista é compartilhado pela representante da atual diretoria da entidade, Mirna Maia Freire. “Esta medida fere os princípios de uma escola laica e plural, além de restringir discussões sobre Filosofia, por exemplo. Durante as discussões e a votação para aprovação da lei, fizemos protestos e manifestações, ocupamos ruas e as galerias no dia da decisão. A lei foi aprovada, mas fere o Estado Laico de Direito”, disse a educadora, que atua na rede estadual de ensino.

A discussão vem sendo acompanhada por pesquisadores como a antropóloga Janayna Lui, que estuda as relações entre religião, poder público e sociedade no Rio. Pós-doutoranda no Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro – IUPERJ/UCAM, Janayna se dedica a “mapear os diferentes ‘blocos’ envolvidos no debate público sobre o ensino religioso no Rio de Janeiro, tanto laicos como religiosos, para entender suas novas configurações e as possíveis estratégias de ação desses grupos para manter ou não a disciplina nas escolas”.

Segundo Janayna, este é um debate que já parte de uma contradição conceitual: o Estado brasileiro é laico; no entanto, a Constituição brasileira prevê a oferta do ensino religioso. A mesma Constituição, no entanto, ressalva que a matrícula no ensino religioso, também previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, é facultativa. Ela explica que “a escola é um lugar de formação de sujeitos que partilham identidades diversas. Falar de religião da maneira como ocorre atualmente, através do ensino religioso confessional, é complicado, sobretudo na escola pública que se define laica.”

Segregação

O “ensino religioso plural” implantado no Rio de Janeiro separa as diferentes denominações religiosas, e consequentemente, os alunos que as seguem em aulas distintas, o que para muitos críticos configura um modelo de ensino religioso confessional, que implica em segregar os alunos, criando terreno fértil para a intolerância de credo. Estudiosa do tema desde a graduação em Antropologia, Janayna Lui diz que “o modelo confessional implementado no Rio de Janeiro gerou sérios problemas, não só pelo fato de dividir os alunos em credos como também por razões práticas, principalmente no que tange às metodologias aplicadas em sala de aula, gerando casos de intolerância religiosa entre professores e alunos. “.

Os estados podem escolher o modelo de ensino religioso a ser implementado nas suas escolas. “Esse modelo não pode é ser proselitista, ou seja, é vetado ao professor doutrinar os alunos”, observa Janayna. Existe o modelo confessional, que consiste em aulas separadas pelos diferentes credos (católicos, evangélicos, espíritas e outros, como define a lei estadual do Rio de Janeiro n. 3459/2000); o interconfessional, no qual as entidades religiosas entram em um acordo sobre as diretrizes curriculares e elaboram em conjunto o material didático; e o supraconfessional, adotado no Estado de São Paulo, que se dedica ao estudo da história das religiões, assegurando o respeito da diversidade cultural e religiosa.

Aparentemente menos polêmico, mesmo o modelo paulista não está livre de contradições, afirma Janayna. “Em outra deliberação, a lei afirma que deve assegurar o respeito à Deus. Mas aí, pergunta-se, e as religiões que não acreditam em um Deus único? Ou seja, mais uma vez, aspectos cristãos e monoteístas são evidenciados numa legislação. A legislação do Acre, por exemplo, define o ensino religioso de lá como ‘interconfessional’, mas há aspectos descritos na lei que evidenciam a prevalência da matriz cristã, ou seja, de interconfessional parece não ter nada, o que chega a ser no mínimo curioso, porque sabemos da existência de religiões não-cristãs”, questiona a antropóloga.

Sua conclusão é que “o ensino religioso na rede pública de Educação não funciona, qualquer que seja o modelo instituído. Nas salas de aula, seja confessional, interconfessional ou supraconfessional, observam-se  práticas proselitistas e doutrinárias nas escolas. Os professores não possuem formação adequada para tratar de religião com distanciamento e os alunos ainda estão em formação, o que torna a oferta de uma disciplina como essa – na escola pública – algo muito complicado”.

A visão dos religiosos

O Movimento Inter Religiões – MIR, é uma entidade que congrega diversos credos, defende a diversidade cultural e religiosa, o Estado laico e a promoção da paz, com mais de 22 anos de atuação no Rio de Janeiro. Segundo Graça Nascimento, coordenadora do movimento, o MIR não se posiciona contra o ensino religioso, e sim contra o modelo adotado pelo município do Rio de Janeiro. Para ela, “o ensino religioso confessional só vai funcionar para as religiões majoritárias, é proselitista e não atende a diversidade da matriz religiosa brasileira, que na nossa visão, deve ser inclusiva. Além disso, a implementação deste ensino religioso deve respeitar também aqueles que não fazem parte de nenhuma religião. Com o modelo confessional, as crianças que não são das religiões majoritárias sofrem constrangimentos e discriminações. O movimento defende o ensino religioso de um ponto de vista histórico e cultural. As tradições indígenas do Brasil, por exemplo, devem ser respeitadas”.

No Rio de Janeiro, algumas religiões optaram por não integrar as denominações representadas nas salas de aula das escolas de rede pública municipal, apesar de contarem com um número significativo de fiéis. O Conselho Espírita do Estado do Rio de Janeiro – CEERJ, decidiu não aderir ao modelo adotado pela Secretaria Municipal de Educação e é contrário ao ensino religioso confessional remunerado. Para o diretor de relações externas do conselho, Hélio Ribeiro Loureiro, “o ensino espírita é praticado no lar e nos centros espíritas, dentro da premissa evangélica ‘dai de graça o que de graça recebestes’. Não concordamos com ‘professores de Espiritismo’ remunerados”.

Estado Laico

“O Estado é laico. A escola pública continua laica. O ensino religioso não fere o princípio da laicidade”, defende a professora Veronica Silva Bandeira Chaves, que leciona a disciplina ensino religioso na rede pública estadual de Educação, onde a modalidade foi implementada desde o ano 2000 durante a gestão do ex-governador Garotinho, nos mesmos moldes e através de lei semelhante a implementada na capital em 2012. A professora Veronica conta sua experiência com a matéria em sala de aula: “no Estado, temos um currículo comum. O primeiro tema abordado com as turmas é o respeito a diversidade religiosa. Apesar da diversidade cultural brasileira, ainda existe muito preconceito contra algumas religiões. Nosso trabalho vai justamente contra essa discriminação e no sentido de agregar valores à comunidade escolar, como integridade, moral, ética e respeito mútuo. Também analisamos criticamente o que acontece na sociedade e trabalhamos temas do cotidiano dos alunos. Eu ensino em uma escola inserida em um contexto violento, muitas vezes dentro das casas dos nossos alunos, então trabalhamos muito o tema da violência. Ensinamos o respeito a todos”, disse a professora, que trabalha no Colégio Estadual Roberto Silveira, no bairro Éden, na Baixada Fluminense.

A pesquisadora Amanda Mendonça, do Observatório da Laicidade na Educação – OLE, contesta a atribuição do papel de guardião da moral dentro das escolas ao ensino religioso. “Um discurso interessante nesta retomada do ensino religioso é o de ferramenta para o ensino de valores morais como ética e solidariedade, quando estes valores deveriam permear todas as disciplinas”.

O OLE surgiu como núcleo de pesquisa na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e é contrário a qualquer modelo de ensino religioso nas escolas. Para os profissionais do Observatório, “o modelo confessional é o que gera mais preconceitos e discriminações. Além disso, os critérios de seleção das religiões representadas em sala de aula são baseados em um censo interno, e não representam a diversidade cultural e religiosa do Rio de Janeiro”, afirma Amanda, que em sua dissertação de mestrado avaliou o processo de implementação do ensino religioso na rede estadual de Educação do Rio de Janeiro. Ela observa ainda que a disciplina deveria ser opcional, mas “na prática não é o que acontece. Nossas pesquisas demonstraram que muitos pais de alunos, em diversas escolas de diferentes municípios, não são informados de que o ensino religioso é optativo e seus filhos são matriculados em aulas confessionais de religiões majoritárias, basicamente, cristãs”.

Existe uma ação de inconstitucionalidade por parte do Ministério Público Federal contra a implementação do ensino religioso, ainda sem uma decisão julgada pelo Supremo Tribunal Federal – STF. O Observatório da Laicidade na Educação esteve presente, ainda este ano, em uma audiência na ALERJ que encaminhou uma comissão para pressionar o Supremo a decidir sobre o tema. Segundo Amanda, o OLE segue na expectativa de que “a comissão vá a Brasília ainda este ano para uma audiência com o ministro Roberto Barroso, que deve decidir sobre a inconstitucionalidade da implementação desta modalidade de ensino nas escolas”.

O modelo carioca

Representante da Secretaria Municipal de Educação – SME, Simone Vital, assegura que, apesar de separar as aulas por credo, o ensino religioso implementado nas escolas do Rio de Janeiro não é confessional. “O nosso modelo é o ensino religioso plural, como no texto da lei. Os pais escolhem qual aula seus filhos vão participar. São três: Católica, Evangélica e Afro-brasileira. Seriam quatro com o Espiritismo, de acordo com a pesquisa que realizamos para definir quais seriam as denominações com maior representatividade, mas os espíritas não quiseram por se tratar de um serviço remunerado.”

Simone Vital explica que o professor “não faz um trabalho de impor dogmas, não é catequese, não é disso que se trata. A lei é clara sobre não sermos proselitistas. Nossa proposta é trabalhar esta disciplina para estimular valores e atitudes positivas para a vida cotidiana daquele aluno em sociedade e o respeito mútuo entre os diferentes credos. As orientações curriculares dos conteúdos passados em sala de aula foram construídas de forma coletiva e participativa. Estes professores concursados que atuam hoje em sala de aula começaram suas atividades em reuniões com as coordenadorias onde estão lotados, elaborando estes conteúdos, questionando o que seria importante e prioritário nas aulas, trazendo estes conteúdos até a Secretaria para serem debatidos”.

A SME entende que o ensino religioso nas escolas da rede fundamental não fere o Estado laico de direito, por se tratar de uma disposição constitucional sua oferta e opcional sua matrícula, e afirma que a lei municipal surgiu para atender uma demanda da sociedade civil, que “de forma democrática cobrou do município a implementação da modalidade de ensino. Tivemos muitas reuniões, levamos para a Câmara dos Vereadores onde houve audiência pública. Tudo foi muito debatido com a sociedade”. A SME afirma que interlocutores das três denominações religiosas representadas em sala de aula, a Arquidiocese do Rio de Janeiro, a Ordem dos Ministros Evangélicos do Brasil – OMEB, além da União Espiritista de Umbanda do Brasil – UEUB, participam com os professores, SME e comunidade escolar na elaboração dos conteúdos de sala de aula.

Sobre a comunicação do caráter optativo da matrícula aos pais dos alunos, a SME apresentou o modelo dos cartazes em formato A3 que são obrigatoriamente afixados nos locais de matrícula dos alunos. Simone também afirmou que durante a matrícula, os pais e responsáveis respondem perguntas e são informados de que o ensino religioso é facultativo. Segundo a SME, em todas as escolas onde o ensino religioso é ofertado, para aqueles que não optaram pela disciplina, está garantido aos alunos a aula de Educação e Valores. São “conteúdos que perpassam todas as disciplinas, não é atribuição exclusiva do ensino religioso”, explicou Sueli Bulhões, também representante da SME.

O tema é bastante polêmico, além de contraditório em sua origem constitucional. Defensores afirmam que o ensino é plural, termo usado na lei para adjetivar a modalidade de ensino religioso implementada pelo município do Rio de Janeiro, e que este ensino agrega valores importantes na formação dos indivíduos para a construção de uma cultura da paz e respeito mútuo entre credos, além de atender a um clamor público e democrático da sociedade que, segundo a SME, pressionou o poder público pela criação da lei. Críticos afirmam que a lei surge para atender demandas de bancadas religiosas que representam denominações majoritárias, usando a maquina e os recursos de um Estado laico para atingir objetivos doutrinários, além de gerar intolerância e preconceito no ambiente escolar. Outros defendem um ensino religioso de um ponto de vista histórico e cultural. Mas isto seria ensino religioso? Ou a boa a velha disciplina de História que já integra a grade curricular?

Até que o STF decida sobre a inconstitucionalidade da matéria, e além, o tema ainda vai render muito debate

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