COLUNISTAS: “Onde fica Honório Gurgel?”, por Ana Claudia Souza

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Texto por
Ana Claudia Souza
Data
20 de agosto de 2015

Quantas vezes na rua você já cruzou com um ônibus da linha 362 e se perguntou: afinal, onde fica Honório Gurgel? Linha antiga, que leva à Praça XV, atravessando a Avenida Brasil, e passando por dentro de bairros vizinhos como Rocha Miranda e Coelho Neto, o 362 é uma das conexões de Honório com o Centro dessa cidade que a gente tanto ama, canta, admira, mas que conhece tão pouco. É disso que trata o Ágoras Cariocas, que desembarca no dia 22 de agosto, na praça Othon de Almeida, mais conhecida como a praça do 362, no conjunto do antigo IAPI, em Honório Gurgel.

Uma das invenções do Norte Comum, o Ágoras Cariocas tem como condutor o professor de história Luis Antonio Simas, que de conversa em conversa, de bairro em bairro, tem percorrido a Zona Norte contando e ouvindo histórias de lugares que, se você não prestar atenção, vai passar por eles sem reparar. Coisas da Zona Norte, que enfileira ruas, esquinas, praças, vidas que, se bobear, acabam invisíveis, como se não se não existissem. E negar a alguém o direito à existência é coisa que não devia acontecer!

São muitas as histórias dos bairros da Zona Norte e seus moradores. Mas na esteira da tal invisibilidade, essas histórias de vida acabam de fora da historiografia da cidade, como se essa parte do Rio não tivesse nada a acrescentar ao que se conhece sobre a Cidade Maravilhosa. Tem gente que discorda e, à sua maneira, resolve juntar o que sabe sobre o lugar em que vive, dando seu testemunho a quem se dispuser a ouvir.

Um punhado dessas pessoas está em Honório Gurgel, onde os meninos do Norte Comum chegaram como convidados, depois bateram na porta, e por fim quiseram saber de mais histórias. Agora, querem contar para mais gente o que viram e ouviram em Honório Gurgel, onde eles conheceram a Dona Sônia, que, como a filha, Adriana, faz doces como ninguém, e ainda apoia as invencionices do neto, Victor Hugo, que cismou de juntar amigos e vizinhos e colocar o bairro no mapa da cidade.

A cisma não é nova, deve-se dizer. Nos anos 80, auge das associações de moradores no Rio, as donas de casa do bairro se organizaram, fizeram mutirões, limparam ruas, fizeram jardim, plantaram árvores e cozinharam para um batalhão de gente, que ajudava a cada iniciativa coletiva. Uma dessas moradoras, à medida que ia trabalhando, ia também registrando o que fazia, e ia ouvindo outros vizinhos sobre como (e porquê) foram parar ali naquele lugar. Anos de anotações e histórias renderam o livro A Vida e o Sonho – Memórias Afetivas sobre o Bairro Honório Gurgel, de Zuleika de Souza, lançado em 2013 no meio da rua, bem ao gosto da autora.

O livro veio depois do filme, um pequeno documentário, que registra esse movimento de donas de casa nesse pedaço do Rio de Janeiro que não aceita ser invisível. Dona Zuleika e a Feijoada do Darcy, igualmente lançado em Honório em primeiro lugar, é um pequeno testemunho de uma história que vi acontecer na cozinha de casa, na rua, na esquina, na igreja, nos lugares onde as pessoas se reuniam, invariavelmente com minha mãe junto. Ela e meu pai, Waldomiro de Souza, chegaram em Honório Gurgel pouco depois de se casarem, em 1947. Ali, tiveram nove filhos, aumentaram a casa, plantaram árvores, comeram abacate do pé, fizeram chá de erva cidreira colhida no quintal, receberam manga dada pelo vizinho do lado, viram chegar o asfalto, viram chegar a Avenida Brasil, viram a maria-fumaça ser substituída pelo trem elétrico, o carro de boi dar lugar às lotações e, depois, aos ônibus. Viram a distância se encurtar e também crescer, à medida que o trânsito, infernal, transformava o deslocamento pela cidade num desafio diário. É duro morar distante do Centro. Sempre foi. Sempre será?

Quantas histórias desse universo micro, familiar, que refletem uma história de transformação da cidade – que mantém como o subúrbio e seu morador uma relação tão desigual. Talvez não dê tempo para contar todas as histórias de Honório Gurgel – e certamente este não é o espaço para começar essa tentativa. Mas o fato de entrar na rota do Ágoras Cariocas, no radar do Norte Comum e de tantas outras pessoas que vivem em outros pontos da cidade, faz deste um evento mais do que bem vindo ao bairro – onde muitos de nós já não moramos mais, onde as relações se abalam a cada triste capítulo de descaso ou violência, mas onde os vínculos de afeto (poderosos e resistentes) são percebidos sem muito esforço.

A cidade que queremos é uma cidade por onde se circula livremente, onde nenhum canto é interdito, nenhum canto é invisível. Conhecer a história e compartilhá-la é um passo importante para a afirmação da existência, para o ato de se tornar visível. É mais fácil amar o que vemos. É mais fácil gostar do que conhecemos. Seja de trem, de ônibus, de carro, a pé, vem pra esse Ágoras Cariocas em Honório Gurgel. No mínimo, você vai descobrir para onde, afinal, vai o 362 quando sai da Praça 15 em direção ao fim da linha. Ou seria o início dela?

Outros textos da autora:
Quem é o dono dessa rua?
O subúrbio é um lugar que não existe?

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